quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Christmas Ham ou Yule Ham: A origem do Pernil de Natal e suas Influências mitológicas

Quando criança, eu adorava passar o dia assistindo desenhos animados. E quando surgia um daqueles desenhos com personagens da Antiguidade, ou da Idade Média, eu ficava me imaginando comendo aqueles 'porcos' assados, apresentados com uma maçã na boca, geralmente, servidos em castelos. Aqueles 'porcos' assados com maçãs vermelhas brilhantes  sempre me pareceram apetitosos. Mais tarde descobri que aquele tipo de porco que via nos desenhos era, na verdade, javali.

Digo isso porque, hoje, eu sem querer, passei pelo desenho do Asterix, no YouTube, e assisti a um episódio onde o viking atrapalhado corria atrás de um javali, seu prato preferido. O javali, parente dos porcos, tem uma carne suculenta como tal.






 Daí, lembrei-me de outra delicia preparada no Natal que foi adotada a partir das antigas tradições pagãs nórdicas: o pernil / o presunto de natal.


Se você estiver familiarizado com a história do cristianismo, ou pelo menos com uma versão confiável dela, você deve saber que para converter as pessoas do paganismo para o cristianismo, as autoridades da Igreja Cristã acharam conveniente assimilar os antigos costumes pagãos com as novas tradições cristãs. Por exemplo, vamos lembrar que o canto de músicas natalinas não era originalmente parte das tradições cristãs, pois eram malvistos por se tratar de um rito oriundo de festas pagãs. Na verdade, hinos à serviço da igreja foram proibidos até que em 1223 São Francisco de Assis apresentou hinos da Natividade durante Missa do Galo, e essa prática pegou.

Em seu livro "Deuses e Mitos do Norte da Europa", a Dra. Hilda Roderick Ellis Davidson, antiquarista e acadêmica inglesa, afirma que até o século XII, o cristianismo foi bem enraizado na Europa, embora lendas e práticas do paganismo também tenham sobrevivido. O Natal comemorado em 25 de dezembro, as festas no meio do inverno e a prática de servir presunto transcendeu a assimilação das religiões antigas.

Sabe-se, que o pernil de javali já era usado pelos povos nórdicos e germânicos como um tributo a Freyr, deus escandinavo associado as colheita e a fertilidade, que tinha o javali como um de seus animais de representação.

Freyr

[Na antiga tradição nórdica ]  era um sacrifício realizado com o intuito de implorar a Freyr para ele lhes  mostrar dádivas  para um novo ano. ....A cabeça de javali com maçã na boca, era levada para o salão de banquetes em um prato de ouro ou de prata ao som de trombetas e as canções dos trovadores (Berger, Pamela (1985). The Goddess Obscured: Transformation of the Grain Protectress from Goddess to Saint. Boston: Beacon Press. pp. 105-112.)

A literatura traz algumas citações onde folcloristas e historiadores[1] constatam que o presunto de Natal teria, na verdade, origens na Inglaterra:

[Essa tradição [que] foi iniciada com toda probabilidade na Ilha da Grã-Bretanha pelos anglo-saxões, embora o nosso conhecimento venha substancialmente de tempos medievais.... (Berger, Pamela (1985). The Goddess Obscured: Transformation of the Grain Protectress from Goddess to Saint. Boston: Beacon Press. pp. 105-112.)

Em " The Goddess Obscured: Transformation of the Grain Protectress from Goddess to Saint  - A Deusa Obscura: Transformação do Grande Protetora de Deusa para Santa", de Pamela Berger, vai mais longe quando afirma que Santo Estevão pode ter herdado o simbolismo dos cavalos e a tradição do presunto de Natal de velhas práticas pagã. 

Santo Estevão foi primeiro mártir da Igreja Cristã. Foi apedrejado até a morte depois de ter sido considerado culpado por blasfêmia pelo Sinédrio (Conselho Judaico) e São Paulo aparece com destaque na sua lapidação. Paulo, um judeu antes de sua conversão ao cristianismo, assistiu ao apedrejamento com a aprovação - como está descrito em Atos 22:20.

Santo Estevão  - relíquia bizantina.
O dia de Santo Estêvão é 26 de dezembro (27 de dezembro no Cristianismo oriental). Na arte cristã ocidental, ele é freqüentemente representado sendo apedrejado por uma multidão, ou como um jovem carregando três pedras e uma palma. Na arte sueca Estêvão, com o nome de Stephen, é mostrado trazendo uma cabeça de javali para um banquete de Yule, comemoração realizada desde os tempos de Freyr e muito parecida com as festas de Natal - este elemento extra-canônico sobreviveu da religião pagã.  

Outra referência aos tempos do paganismo vêm dos antigos romanos que também comiam javalis durante a Saturnália, em honra do Adônis, o deus que foi morto por um javali e cujo aniversário supõe que seja em 25 de dezembro.

Adônis e Vênus
O javali tem significado tão importante para as celebrações natalinas que em 1521 foi criada a musica A cabeça do javali de Natal, cantada na Inglaterra nos jantares de Natal, enquanto a cabeça de um javali era mostrada em um prato.


O costume ainda é observado, em cada Natal do Queen's College, Oxford. – tradição remanescente da ocupação romana da Grã-Bretanha. Apreciem:


Com isso a gente fica imaginando que realmente nada se perde no tempo, e que tudo pode ser reaproveitado se tiver interesse para isso. Quem tiver interesse sobre os personagens mitológicos apresentados no texto, depois da receita de pernil para o natal, seguem algumas linhas sobre eles. 


Pernil de Natal

1 pernil desossado (cerca de 3 kg)
200 g de manteiga
meia colher (chá) de pimenta-do-reino
meia colher (chá) de louro em pó
5 dentes de alho amassados
1 xícara (chá) de suco de limão
4 tabletes de Caldo de Carne
Molho
4 cebolas fatiadas
3 colheres (sopa) de aceto balsâmico
2 colheres (sopa) de açúcar
fruta fresca para decorar

Preparo
Limpe o pernil, tirando a gordura aparente. Faça furos profundos com um garfo. Em uma tigela, misture a manteiga com a pimenta-do-reino, o louro e o alho. . Besunte o pernil com a manteiga temperada. Coloque em uma assadeira grande e despeje o suco de limão e o Caldo de carne dissolvido em duas xícaras (chá) de água fervente. Deixe-o tomar gosto por cerca de 12 horas, virando-o na metade do tempo. Leve ao forno médio-alto (200ºC), preaquecido, por cerca de 2 horas. Vire-o na metade do tempo. Se necessário, despeje mais água no fundo da assadeira. Molho: Retire a carne da assadeira. Coloque a assadeira sobre a chama do fogão, despeje uma xícara (chá) de água, as cebolas, o aceto balsâmico e o açúcar. Mexa, raspando o fundo da assadeira delicadamente. Ferva por cerca de 5 minutos ou até as cebolas estarem macias e engrossar o molho. Sirva o pernil decorado com as frutas e o molho em uma molheira. Dica: - A carne de porco deve ser sempre bem assada. Para saber se já está no ponto certo, fure-o com um espeto ou uma faca com ponta na parte mais carnuda do assado. Se a carne estiver no ponto, deverá verter um suco claro, sem nenhum tom rosado.

Para os curiosos

Frey, Frei, Freyr ou Freir é filho de Njord e irmão de Freya, e está casado com a gigante Gerda. É um deus representado como belo e forte que comanda o tempo e a prosperidade, a fertilidade, a alegria e a paz. É o deus chefe da agricultura. É o patrono da fertilidade, o soberano dum país chamado Álflheimr, reino dos elfos da luz (ljósálfar), que são os responsáveis pelo crescimento da vegetação. O Skirnismál (“A Balada de Skirnir”) nos informa que Frey é filho de Njörðr (Njord), o deus da fertilidade. É portanto um deus dos Vanir. Seu cavalo salta qualquer obstáculo e a sua espada mágica, forjada por anões, move-se sozinha nos ares desferindo golpes mortais, mesmo se for perdida em combate. É senhor de um javali de ouro chamado Gulinbursti, criação dos anões Brokk e Sindri, que conduz um carro como se fosse puxado por cavalos, e cujo brilho reluz na noite. Tem também um navio, Skidbladnir (Skidbladnir), que é tão grande que nele cabem todos os deuses, mas pode ser dobrado e guardado na algibeira. É uma das mais antigas divindades germânicas junto com Freyja e Njörðr, e seu nome significa “senhor". Apesar de ser um deus pacífico, Frey está destinado a lutar contra Surtur na batalha de Ragnarok. Nesta luta não poderá utilizar a sua espada mágica, porque a deu ao seu escudeiro, Skirnir.

Adônis, nas mitologias fenícia e grega, era um jovem de grande beleza que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Adônis passou a despertar o amor de Perséfone e Afrodite. Mais tarde as duas deusas passaram a disputar a companhia do menino, e tiveram que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que ele passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.

Vênus e Adônis
Conta Thomas Bulfinch em O LIVRO DE OURO DA MITOLOGIA a lenda de Vênus e Adônis.
Brincando, certo dia, com seu filho Cupido Vênus feriu o peito em uma de suas setas. (Se alguém fosse ferido pela flecha de Cupido, ou Eros ou Amor, apaixonava-se pela primeira pessoa que visse).
Afastou a criança mas a ferida era mais profunda do que pensara. Antes de curá-la, Vênus viu Adônis, e apaixonou-se por ele. Já não se interessava por seus lugares favoritos: Pafos, Cnidos e Amatos, ricos em metais. Afastava-se até mesmo do céu, pois Adônis lhe era mais caro. Seguiu-o, fez-lhe companhia.
Ela, que gostava de se reclinar à sombra, sem outras preocupações a não ser a de cultivar seu encantos, anda pelos bosques e pelos montes, vestida como a caçadora Diana; chama seus cães e caça lebres e cervos, ou outros animais fáceis de caçar, abstendo-se, porém, de perseguir os lobos e os ursos, rescendendo ao sangue dos rebanhos. Também recomenda a Adônis que tenha cuidado com tão perigosos animais.
-Sê bravo com os tímidos. A coragem contra os corajosos não é segura. Evita expor-te ao perigo e ameaçar minha felicidade. Não ataques os animais que a natureza armou. Não aprecio tua glória ao ponto de consentir que a conquistes expondo-te assim. Tua juventude e a beleza que encanta Vênus não enternecerão os corações dos leões e dos rudes javalis. Pensa em sua terríveis garras e em sua força prodigiosa! Odeio toda a raça deles. Queres saber porque?
E, então, contou a história de Atalanta e Hipómenes, que ela transformara em leões, para castigo da ingratidão que lhe fizeram.
Tendo feito essa advertência, Vênus subiu ao seu carro, puxado por cisnes, e partiu através dos ares. Adônis, porém, era demasiadamente altivo para seguir tais conselhos. Os cães haviam expulsado um javali de seu covil e o jovem lançou seu dardo, ferindo o animal de lado. A fera arrancou o dardo com os dentes e investiu contra Adônis, que virou as costas e correu; o javali, porém, alcançou-o, cravou-lhe os dentes no flanco e deixou-o moribundo na planície.
Vênus , em seu carro puxado por cisnes, ainda não chegara a Chipre, quando ouviu, cortando o ar, os gemidos de seu amado, e fez voltar para a terra os corcéis de brancas asas. Quando se aproximou e viu, do alto, o corpo sem vida de Adônis, coberto de sangue, desceu e curvando-se sobre ele, esmurrou o peito e arrancou os cabelos. Acusando as Parcas, exclamou:
- Sua ação, porém, constituiu um triunfo parcial. A memória de meu sofrimento perdurará e o espetáculo de tua morte e de tuas lamentações, meu Adônis, será anualmente renovado. Teu sangue será mudado numa flor; este consolo ninguém pode negar-me.
Assim falando, espalhou néctar sobre o sangue e, ao se misturarem os dois líquidos, levantaram-se bolhas, como numa lagoa quando cai a chuva, e, no espaço de uma hora, nasceu uma flor cor-de-sangue, como a da romã. Uma flor de vida curta, porém. Dizem que o vento lhe abre os botões e depois arranca e dispersa as pétalas; assim é chamada de anêmona, ou flor-do-vento, pois o vento é a causa tanto de seu nascimento como de sua morte.
Milton faz alusão ao episódio de Vênus e Adônis, em "Comus":
Entre moitas de rosas e jacintos,
Muitas vezes repousa o jovem Adônis
Amortecida a dor, e a seu lado
Jaz a triste rainha dos assírios...


[1] Spears, James E.  Folklore, Vol. 85, No. 3. (Autumn, 1974), pp. 194-198.

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