Hoje, Dia da Consciência
Negra, sinto a alma do Brasil estremecer como um grande pilão ancestral, onde
séculos de dor e coragem são ainda moídos até virar sustento — espesso, vivo,
inapagável. O ar parece murmurar histórias quando passei pelo mercado e senti
de longe o cheiro do dendê aquecido que alguém usava pra saborear uma farofa
pra acompanhar um prato qualquer.
Aquele cheiro me alcançou:
era como se alguém estivesse mexendo uma panela funda, lenta, ritualística —
dessas que anunciam seu perfume muito antes de revelarem seu conteúdo. E
naquele instante, o ar pareceu se abrir em véus. O cheiro não vinha apenas de
um tacho; vinha de um tempo. Cada nota quente, gordurosa e luminosa do dendê
carregava um rastro antigo, como se mãos anônimas — mãos que já não estão entre
nós, mas ainda regem a respiração do Brasil — voltassem a mexer os caldeirões
da memória coletiva.
Esse cheiro, neste dia
preciso do calendário, acendeu-se em mim como um fósforo riscado no escuro —
não para iluminar minha própria história, mas para revelar, por um instante, a
vastidão da memória coletiva que não me pertence, mas que reconheço, reverencio
e busco compreender. Sou branco, e é justamente por isso que caminho com
cuidado por essa chama: ela não arde em mim da mesma maneira, mas ainda assim
me alcança, como um calor que pede silêncio, escuta e respeito.
Neste Dia da Consciência
Negra, esse fósforo metafórico não queima para destruir; ele serve para revelar
contornos antigos — vidas, dores, alegrias, sabores — que a história tentou
apagar. E diante dessa luz breve e intensa, percebo que a memória não exige
sangue compartilhado, mas humanidade disponível para enxergar.
É por isso que retorno,
quase como quem retorna a um altar doméstico, àquela história que nunca sei se
pertence ao reino das lendas ou ao das verdades demasiado reais: o quibebe de
Luísa Mahin. Um prato humilde na aparência, mas que nasceu para carregar dentro
de si não apenas abóboras macias, e sim segredos — bilhetes dobrados como asas,
sinais de uma rebelião que ardia em 1835.
Há algo de profundamente
comovente nisso: numa época em que a liberdade precisava viajar escondida, a
cozinha transformou-se em porto seguro, cofre mágico, mensageira silenciosa.
Hoje, enquanto honramos a memória negra que sustenta nossas mesas, nossas histórias
e nossos passos, revisitar esse quibebe é como acender uma lamparina num quarto
antigo e ver, na chama que dança, o rosto de todos aqueles que lutaram para que
ainda estivéssemos aqui.
Quando penso em Luísa Mahin,
mãe de Luís Gama, penso naquelas figuras históricas cuja biografia parece ter
sido escrita com tinta que o tempo insistiu em apagar. Suas datas são sombras,
suas origens, sussurros; seus passos sobrevivem não por registros, mas por
testemunhos rachados — e, ainda assim, luminosos. É quase cruel notar que
figuras como ela, negras, mulheres, libertas ou escravizadas, só aparecem na
história quando tocam o nervo da ordem colonial. Mas talvez seja justamente
nessa fricção que o mito se acende.
É 1835, Salvador.
O Recôncavo pulsa como um
coração dividido.
Enquanto o açúcar move
fortunas e o tráfico atlântico de escravos ainda ergue sua máquina brutal
(lembrando que o fim legal só viria em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós), a
cidade se torna um dos maiores centros urbanos africanos das Américas. Iorubás,
haussás, jejes, nagôs: a geografia dos povos étnicos da Costa da Mina se refaz
em becos e ladeiras.
É também ali que fermenta a
Revolta dos Malês — a mais bem organizada revolta urbana de africanos
escravizados no Brasil. De 24 para 25 de janeiro de 1835, muçulmanos
alfabetizados em árabe, muitos deles ex-escravos ou libertos, conspiram por
meses para rasgar a ordem escravista. E aqui entra o ingrediente essencial da
história: sem comunicação, não há levante. Sem bilhete, não há insurreição. Sem
mensageiras, não há esperança.
As fontes do processo de
1835 — especialmente os autos de Devassa — registram a presença constante das
negras de ganho, essas mulheres que circulavam pelas ruas como tecelãs de
mundos: vendiam comida, tabaco, doces, hortaliças; sabiam ouvir, observar, desviar-se
quando necessário. Eram, de fato, o sistema nervoso da cidade.
Entre elas, aparece o nome
de Luísa Mahin — ou melhor, a suspeita, o rastro, o rumor. Não há prova
documental de que ela atuou na Revolta, mas há indícios, há tradições orais, há
a poderosa declaração de Luís Gama, em 1880, ao descrevê-la como “mina, livre,
de extraordinária inteligência, orgulho, altivez e coragem”. E há, sobretudo, o
silêncio típico do que era perigoso registrar.
É nesse cenário que entra o
quibebe, uma preparação ancestral da África Ocidental. adaptada no Recôncavo:
abóbora cozida, desmanchando-se em doçura terrosa, perfumada com azeite,
pimenta, cebola, quiabo ou dendê — dependendo da mão que o preparasse. O prato
era barato, portátil, fácil de aquecer, vendido por negras de ganho desde pelo
menos o final do século XVIII. Mas, na Salvador de 1835, tornou-se também uma
embalagem perfeita para códigos.
Documentos da época
descrevem bilhetes enrolados e escondidos em trouxas de comida. O quibebe, com
sua textura densa, cremosa, envolvente, podia camuflar mensagens dobradas,
pequenas tiras de papel com versos do Alcorão, senhas em árabe, nomes, pontos
de encontro. A comida, que nunca era revistada por soldados brancos por medo de
contaminação simbólica e ignorância dos ingredientes, tornava-se passagem
segura — e cúmplice.
Há nisso uma poesia feroz:
um alimento simples, feminino, africano, humilde aos olhos de quem não o
entende, transformado em arma política.
Eu gosto de pensar que toda
refeição abriga uma confidência — mas, neste caso, a confidência não sussurra:
ela arde, pulsa, se esconde. O quibebe não era apenas comida; era uma escrita
de fogo mascarada em abóbora, um pequeno sortilégio doméstico que disfarçava a
febre da insurgência. Havia nele uma cintilação quase sobrenatural, como se a
doçura fosse apenas o verniz de um segredo mais antigo, um código cozido
lentamente para atravessar as mãos do opressor sem ser percebido. Era alimento,
sim — mas também senha, feitiço, mapa dobrado na palma da mão. E cada colherada
carregava uma rebelião inteira tentando respirar.
Mas o que mais me toca é que
esse prato, aparentemente frágil, venceu a passagem do tempo. Ele atravessou
séculos. Continuou nos tabuleiros das baianas, nas cozinhas matriarcais, nos
cadernos ungidos pelo dendê. Tornou-se símbolo do que só o povo negro sabe
fazer com maestria: transformar o cotidiano em estratégia, e a comida em
sobrevivência.
Hoje, Dia da Consciência
Negra, lembrar o quibebe de Luísa Mahin é lembrar que a história da alimentação
no Brasil não é só feita de festas, receitas nobres, mesas europeias, doces de
mosteiros e conventos. É feita de resistência. De códigos escondidos entre
fibras de abóbora. De bilhetes que escaparam da devassa porque se. camuflaram
no aroma quente que saía das panelas.
A comida sempre foi
fronteira.
Aqui, tornou-se também arma,
refúgio, linguagem.
E cada colher deste quibebe
ancestral ainda carrega — densa, vibrante, luminosa — a promessa de liberdade
que corria pelas ruas de Salvador em 1835.
Receita Histórica
Reconstruída
Quibebe das Negras de Ganho
(c. 1830–1840)**
baseada em registros
culinários da Costa da Mina, descrições do Recôncavo Baiano e relatos sobre
comidas de ganho
Observação importante:
Não existe um registro
escrito exato da receita usada por negras de ganho em Salvador em 1835.
Contudo, sabemos pelos Autos
da Devassa da Revolta dos Malês, por descrições de viajantes como Rugendas
(1835) e Koster (1816), e por obras de culinária afro-baiana do século XIX,
como as recolhidas posteriormente por Manuel Querino, quais eram os ingredientes
típicos dessas preparações vendidas nas ruas.
A receita abaixo é uma reconstrução historicamente fiel, seguindo ingredientes disponíveis na época, técnicas documentadas e a simplicidade prática necessária ao transporte e à venda.
QUIBEBE
1 kg de abóbora-menina (a variedade mais comum no Recôncavo)
2 colheres de sopa de azeite de dendê
1 cebola grande picada bem miúdo
1 pedaço pequeno de gengibre ralado
(ingrediente comum entre nagôs e haussás)
1 pimenta malagueta inteira (ou amassada
conforme o gosto)
Sal grosso a gosto
Opcional histórico:
1 ou 2 quiabos fatiados finos (há
registros de quibebe com quiabo para dar liga)
1 colher de farinha de mandioca fina
para engrossar (usada em tabuleiros de ganho)
Preparo: Descasque a abóbora, corte em pedaços
grandes e leve ao fogo com um pouco de água e sal grosso. Cozinhe até que fique
completamente macia — quase desfazendo ao toque. Em outra panela de ferro ou
barro (os recipientes mais usados pelas vendedoras), refogue a cebola no azeite
de dendê, até dourar levemente. O dendê era mais escuro e aromático que o
atual, extraído artesanalmente. Adicione o gengibre e a pimenta malagueta,
mexendo para liberar aroma. Acrescente a abóbora cozida, já amassada com colher
de pau, misturando ao refogado até formar um creme espesso. Se desejar, junte
os quiabos, que ajudarão a dar uma consistência mais viscosa — muito prática
para manter o calor durante o transporte. Se o quibebe precisar ficar ainda
mais firme (especialmente para ser levado em trouxas, como acontecia à época),
acrescente uma colher de farinha de mandioca fina e mexa até engrossar. Cozinhe
em fogo baixo, mexendo sempre, até obter uma pasta espessa, brilhante, densa —
fácil de embalar em folhas ou potes de barro e perfeita para “esconder”
pequenos papéis entre suas dobras.
Servia-se quente ou morno, em pequenas
porções, vendidas nas ruas, nos mercados e nas portas das igrejas de Salvador.
KOSTER, Henry. Travels in Brazil.
London: Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1816.
RUGENDAS, Johann Moritz. Malerische
Reise in Brasilien (Voyage Pittoresque dans le Brésil). Paris: Engelmann &
Cie., 1835.
BRASIL. Arquivo Público do Estado da
Bahia. Autos da Devassa da Revolta dos Malês (1835). Salvador: APEB, 1835.
QUERINO, Manuel. A arte culinária na
Bahia. Salvador: Livraria Econômica, 1916.
QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Salvador: Tipografia Beneditina, 1938. Ver menos






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