quinta-feira, 20 de novembro de 2025

DA COZINHA À REVOLTA: O QUIBEBE DE LUÍSA MAHIN E A MEMÓRIA QUE REACENDE NO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

 

Hoje, Dia da Consciência Negra, sinto a alma do Brasil estremecer como um grande pilão ancestral, onde séculos de dor e coragem são ainda moídos até virar sustento — espesso, vivo, inapagável. O ar parece murmurar histórias quando passei pelo mercado e senti de longe o cheiro do dendê aquecido que alguém usava pra saborear uma farofa pra acompanhar um prato qualquer.

Aquele cheiro me alcançou: era como se alguém estivesse mexendo uma panela funda, lenta, ritualística — dessas que anunciam seu perfume muito antes de revelarem seu conteúdo. E naquele instante, o ar pareceu se abrir em véus. O cheiro não vinha apenas de um tacho; vinha de um tempo. Cada nota quente, gordurosa e luminosa do dendê carregava um rastro antigo, como se mãos anônimas — mãos que já não estão entre nós, mas ainda regem a respiração do Brasil — voltassem a mexer os caldeirões da memória coletiva.

Esse cheiro, neste dia preciso do calendário, acendeu-se em mim como um fósforo riscado no escuro — não para iluminar minha própria história, mas para revelar, por um instante, a vastidão da memória coletiva que não me pertence, mas que reconheço, reverencio e busco compreender. Sou branco, e é justamente por isso que caminho com cuidado por essa chama: ela não arde em mim da mesma maneira, mas ainda assim me alcança, como um calor que pede silêncio, escuta e respeito.

Neste Dia da Consciência Negra, esse fósforo metafórico não queima para destruir; ele serve para revelar contornos antigos — vidas, dores, alegrias, sabores — que a história tentou apagar. E diante dessa luz breve e intensa, percebo que a memória não exige sangue compartilhado, mas humanidade disponível para enxergar.

É por isso que retorno, quase como quem retorna a um altar doméstico, àquela história que nunca sei se pertence ao reino das lendas ou ao das verdades demasiado reais: o quibebe de Luísa Mahin. Um prato humilde na aparência, mas que nasceu para carregar dentro de si não apenas abóboras macias, e sim segredos — bilhetes dobrados como asas, sinais de uma rebelião que ardia em 1835.



Há algo de profundamente comovente nisso: numa época em que a liberdade precisava viajar escondida, a cozinha transformou-se em porto seguro, cofre mágico, mensageira silenciosa. Hoje, enquanto honramos a memória negra que sustenta nossas mesas, nossas histórias e nossos passos, revisitar esse quibebe é como acender uma lamparina num quarto antigo e ver, na chama que dança, o rosto de todos aqueles que lutaram para que ainda estivéssemos aqui.

Quando penso em Luísa Mahin, mãe de Luís Gama, penso naquelas figuras históricas cuja biografia parece ter sido escrita com tinta que o tempo insistiu em apagar. Suas datas são sombras, suas origens, sussurros; seus passos sobrevivem não por registros, mas por testemunhos rachados — e, ainda assim, luminosos. É quase cruel notar que figuras como ela, negras, mulheres, libertas ou escravizadas, só aparecem na história quando tocam o nervo da ordem colonial. Mas talvez seja justamente nessa fricção que o mito se acende.

É 1835, Salvador.

O Recôncavo pulsa como um coração dividido.

Enquanto o açúcar move fortunas e o tráfico atlântico de escravos ainda ergue sua máquina brutal (lembrando que o fim legal só viria em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós), a cidade se torna um dos maiores centros urbanos africanos das Américas. Iorubás, haussás, jejes, nagôs: a geografia dos povos étnicos da Costa da Mina se refaz em becos e ladeiras.

É também ali que fermenta a Revolta dos Malês — a mais bem organizada revolta urbana de africanos escravizados no Brasil. De 24 para 25 de janeiro de 1835, muçulmanos alfabetizados em árabe, muitos deles ex-escravos ou libertos, conspiram por meses para rasgar a ordem escravista. E aqui entra o ingrediente essencial da história: sem comunicação, não há levante. Sem bilhete, não há insurreição. Sem mensageiras, não há esperança.

As fontes do processo de 1835 — especialmente os autos de Devassa — registram a presença constante das negras de ganho, essas mulheres que circulavam pelas ruas como tecelãs de mundos: vendiam comida, tabaco, doces, hortaliças; sabiam ouvir, observar, desviar-se quando necessário. Eram, de fato, o sistema nervoso da cidade.

Entre elas, aparece o nome de Luísa Mahin — ou melhor, a suspeita, o rastro, o rumor. Não há prova documental de que ela atuou na Revolta, mas há indícios, há tradições orais, há a poderosa declaração de Luís Gama, em 1880, ao descrevê-la como “mina, livre, de extraordinária inteligência, orgulho, altivez e coragem”. E há, sobretudo, o silêncio típico do que era perigoso registrar.

É nesse cenário que entra o quibebe, uma preparação ancestral da África Ocidental. adaptada no Recôncavo: abóbora cozida, desmanchando-se em doçura terrosa, perfumada com azeite, pimenta, cebola, quiabo ou dendê — dependendo da mão que o preparasse. O prato era barato, portátil, fácil de aquecer, vendido por negras de ganho desde pelo menos o final do século XVIII. Mas, na Salvador de 1835, tornou-se também uma embalagem perfeita para códigos.

Documentos da época descrevem bilhetes enrolados e escondidos em trouxas de comida. O quibebe, com sua textura densa, cremosa, envolvente, podia camuflar mensagens dobradas, pequenas tiras de papel com versos do Alcorão, senhas em árabe, nomes, pontos de encontro. A comida, que nunca era revistada por soldados brancos por medo de contaminação simbólica e ignorância dos ingredientes, tornava-se passagem segura — e cúmplice.

Há nisso uma poesia feroz: um alimento simples, feminino, africano, humilde aos olhos de quem não o entende, transformado em arma política.

Eu gosto de pensar que toda refeição abriga uma confidência — mas, neste caso, a confidência não sussurra: ela arde, pulsa, se esconde. O quibebe não era apenas comida; era uma escrita de fogo mascarada em abóbora, um pequeno sortilégio doméstico que disfarçava a febre da insurgência. Havia nele uma cintilação quase sobrenatural, como se a doçura fosse apenas o verniz de um segredo mais antigo, um código cozido lentamente para atravessar as mãos do opressor sem ser percebido. Era alimento, sim — mas também senha, feitiço, mapa dobrado na palma da mão. E cada colherada carregava uma rebelião inteira tentando respirar.

Mas o que mais me toca é que esse prato, aparentemente frágil, venceu a passagem do tempo. Ele atravessou séculos. Continuou nos tabuleiros das baianas, nas cozinhas matriarcais, nos cadernos ungidos pelo dendê. Tornou-se símbolo do que só o povo negro sabe fazer com maestria: transformar o cotidiano em estratégia, e a comida em sobrevivência.

Hoje, Dia da Consciência Negra, lembrar o quibebe de Luísa Mahin é lembrar que a história da alimentação no Brasil não é só feita de festas, receitas nobres, mesas europeias, doces de mosteiros e conventos. É feita de resistência. De códigos escondidos entre fibras de abóbora. De bilhetes que escaparam da devassa porque se. camuflaram no aroma quente que saía das panelas.

A comida sempre foi fronteira.

Aqui, tornou-se também arma, refúgio, linguagem.

E cada colher deste quibebe ancestral ainda carrega — densa, vibrante, luminosa — a promessa de liberdade que corria pelas ruas de Salvador em 1835.

 

Receita Histórica Reconstruída

 

Quibebe das Negras de Ganho (c. 1830–1840)**

baseada em registros culinários da Costa da Mina, descrições do Recôncavo Baiano e relatos sobre comidas de ganho

 

Observação importante:

Não existe um registro escrito exato da receita usada por negras de ganho em Salvador em 1835.

Contudo, sabemos pelos Autos da Devassa da Revolta dos Malês, por descrições de viajantes como Rugendas (1835) e Koster (1816), e por obras de culinária afro-baiana do século XIX, como as recolhidas posteriormente por Manuel Querino, quais eram os ingredientes típicos dessas preparações vendidas nas ruas.

 

A receita abaixo é uma reconstrução historicamente fiel, seguindo ingredientes disponíveis na época, técnicas documentadas e a simplicidade prática necessária ao transporte e à venda. 

QUIBEBE

1 kg de abóbora-menina (a variedade mais comum no Recôncavo)

2 colheres de sopa de azeite de dendê

1 cebola grande picada bem miúdo

1 pedaço pequeno de gengibre ralado (ingrediente comum entre nagôs e haussás)

1 pimenta malagueta inteira (ou amassada conforme o gosto)

Sal grosso a gosto

Opcional histórico:

1 ou 2 quiabos fatiados finos (há registros de quibebe com quiabo para dar liga)

1 colher de farinha de mandioca fina para engrossar (usada em tabuleiros de ganho)

Preparo: Descasque a abóbora, corte em pedaços grandes e leve ao fogo com um pouco de água e sal grosso. Cozinhe até que fique completamente macia — quase desfazendo ao toque. Em outra panela de ferro ou barro (os recipientes mais usados pelas vendedoras), refogue a cebola no azeite de dendê, até dourar levemente. O dendê era mais escuro e aromático que o atual, extraído artesanalmente. Adicione o gengibre e a pimenta malagueta, mexendo para liberar aroma. Acrescente a abóbora cozida, já amassada com colher de pau, misturando ao refogado até formar um creme espesso. Se desejar, junte os quiabos, que ajudarão a dar uma consistência mais viscosa — muito prática para manter o calor durante o transporte. Se o quibebe precisar ficar ainda mais firme (especialmente para ser levado em trouxas, como acontecia à época), acrescente uma colher de farinha de mandioca fina e mexa até engrossar. Cozinhe em fogo baixo, mexendo sempre, até obter uma pasta espessa, brilhante, densa — fácil de embalar em folhas ou potes de barro e perfeita para “esconder” pequenos papéis entre suas dobras.

Servia-se quente ou morno, em pequenas porções, vendidas nas ruas, nos mercados e nas portas das igrejas de Salvador.

 Eu gosto de preparar quibebe mais molinho, pra servir com arroz branco e carne de porco empanada, pra espremer um limão por cima e devorar com gosto.

 DICAS DE LEITURA:

KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1816.

RUGENDAS, Johann Moritz. Malerische Reise in Brasilien (Voyage Pittoresque dans le Brésil). Paris: Engelmann & Cie., 1835.

BRASIL. Arquivo Público do Estado da Bahia. Autos da Devassa da Revolta dos Malês (1835). Salvador: APEB, 1835.

QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador: Livraria Econômica, 1916.

QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Salvador: Tipografia Beneditina, 1938. Ver menos

 

 

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