terça-feira, 11 de novembro de 2025

O PÃO DE SÃO MARTINHO: O 11 DE OUTONO COM HISTÓRIAS QUE AQUECEM

 

Ontem, véspera do dia de São Martinho, compartilhei aqui a receita de um bolo sueco em homenagem ao santo (se perdeu, veja AQUI. Mais do que um simples doce, ele é um gesto que atravessa fronteiras e séculos — um modo de lembrar que a cultura também se assenta à mesa, com suas histórias silenciosas e seus símbolos de partilha. Há algo de profundamente humano nesse gesto antigo: medir o açúcar, acender o forno, esperar que o calor transforme a massa em lembrança. O aroma que se espalha pela casa não é apenas o de um bolo — é o perfume do tempo em repouso, a tradução doce daquilo que não sabemos dizer. Cozinhar é, talvez, a forma mais silenciosa de oração: um diálogo entre o corpo e o passado, entre o desejo e a memória.

Um bolo, afinal, nunca é só alimento. É uma pequena tentativa de deter o instante — de provar, com o sabor e o calor, que ainda existe ternura no mundo, mesmo quando lá fora as estações se confundem e a vida nos sopra com seus ventos frios.

Tentei, assim, oferecer não apenas uma receita, mas um convite: que cada leitor e leitora permitisse que a doçura aquecesse também sua própria mesa, reacendendo lembranças e sabores que sobrevivem ao passar das estações.

Agora, com o fim do ano se aproximando, o outono no Norte Global se faz sentir como um suspiro antigo — o frio se instala com mãos invisíveis, delicadas e impiedosas ao mesmo tempo. Ele acaricia e fere os campos, pinta de cinza as manhãs e deixa o ar saturado de uma beleza melancólica, quase espiritual. É uma época em que o tempo parece caminhar mais lentamente, como se o mundo se recolhesse para ouvir o próprio coração.

E para ver como é irônico o destino — nesses giros lentos e precisos com que a Terra desenha as estações —, aqui, nestes lados do Sul Global, o Brasil floresce em plena primavera. Mas somos um país de dimensões continentais, e até as estações se confundem, como se o tempo, ao atravessar nossas fronteiras, perdesse a rigidez e se tornasse sonho, miragem ou febre.

Ontem mesmo, enquanto o Norte do mundo se recolhia sob o outono, parte do Sul brasileiro experimentava a fúria da natureza — uma fúria tão intensa que se aproximava do sagrado. Três tornados devastadores rasgaram o céu e a terra brasileira, levando consigo não apenas o que era visível, mas também aquilo que se constrói em silêncio: a esperança, o trabalho, o repouso das pequenas vidas.

Uma das cidades mais atingidas foi Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná. O tornado, classificado como F3 na escala Fujita, varreu mais de oitenta por cento da área urbana, deixando atrás de si um rastro de ruínas, seis mortos e uma comunidade mergulhada no espanto.

Tudo o que parecia sólido — casas, árvores, caminhos — foi arrancado em minutos, como se o próprio céu tivesse decidido lembrar-nos da sua antiga linguagem, aquela que fala em ventos e trovões. Resta-nos o silêncio depois da tormenta, e essa certeza desconcertante de que a natureza, em sua grandeza e desatino, ainda é a narradora mais eloquente das nossas fragilidades.

E, ainda assim, há uma espécie de harmonia sombria nisso tudo: como se o mundo, em sua coreografia de luz e sombra, lembrasse a cada um de nós que nenhuma estação é estática, que a serenidade e a destruição são irmãs que dançam juntas desde o princípio dos tempos. Entre o doce e o devastado, entre o lar e a tormenta, seguimos procurando o sentido — talvez no sabor morno de um bolo, talvez apenas na capacidade humana de continuar acendendo o forno, mesmo quando lá fora o vento parece querer apagar todas as chamas.

Ontem, o bolo sueco trouxe calor e doçura — o consolo morno que só a casa conhece, o perfume que se espalha como lembrança e se entranha nas horas. Mas hoje, neste dia de São Martinho, é o pão que nos chama.

Não um pão qualquer, mas o Pão de São Martinho: redondo, antigo, carregado de símbolos, onde o trigo se mistura à lenda e o fermento parece guardar algo da respiração do próprio santo.

Cada fatia é uma oferenda — um pequeno sacramento de partilha, memória e permanência. No pão repousam ecos de antigas histórias murmuradas à beira do fogo, quando o frio pedia abrigo e a palavra ainda era consolo. Há lembranças de gentileza, gestos que atravessam os séculos e se tornam milagre pela simples coragem de existir.

E há, sobretudo, uma magia discreta — dessas que não resplandecem, mas sustentam. A alquimia silenciosa entre a fé e a fome, entre o corpo que implora por alimento e a alma que, sem saber, busca redenção. Em cada migalha há uma promessa: a de que o humano persiste, mesmo quando o mundo parece desabar — e que o pão, humilde e morno, é ainda a forma mais antiga de esperança.

Mas antes de conhecer o pão e compreender o mistério que o habita, é preciso conhecer o homem — aquele que o tempo, em sua lenta e reverente alquimia, consagrou santo. Porque antes do milagre veio a compaixão; antes da lenda, um gesto humano — simples, ardente e desarmado.

Sua história, feita de coragem e ternura, atravessa os séculos como uma chama que se recusa a apagar. E ainda hoje, se ouvirmos com atenção, é possível perceber sua voz — não um clamor, mas um sussurro — lembrando-nos de que toda santidade começa no gesto anônimo de cuidar do outro. 

SÃO MARTINHO DE TOURS: LUZ E GENEROSIDADE NO OUTONO DA VIDA

                             Representação de São Martinho de Tours

Martinho de Tours — em latim, Martinus Turonensis — nasceu em 316 d.C., na cidade de Sabária (Savaria), na província romana da Panônia, hoje Szombathely, na Hungria moderna. Filho de um centurião, cresceu entre o rigor da disciplina militar e o pulsar delicado de uma fé ainda jovem, tímida e muitas vezes perseguida. A família em que nasceu não era cristã; sua educação seguia os caminhos da religião de seus antepassados, a fé politeísta romana, com seus deuses mitológicos, rituais e templos que perfumavam o ar com incenso e devoção.

Mas a curiosidade infantil de Martinho o conduziu a lugares diferentes. Ainda menino, começou a frequentar uma igreja cristã, onde era introduzido aos mistérios da doutrina, mesmo sem ter recebido o batismo. Aos dez anos (326 d.C.), entrou para o grupo dos catecúmenos — aqueles que se preparam para a imersão na fé — e ali sua alma começou a despertar para uma fé que pulsava como um segredo guardado no coração. Foi nesse ponto que Martinho começou a sentir os primeiros chamados silenciosos de compaixão e luz, ainda criança, mas já com a força de um espírito que buscava algo além do mundo visível.

Desde cedo, a tensão entre espada e oração moldou seu espírito: de um lado, aprendia os ofícios do império, a hierarquia da guerra, o frio da ordem; do outro, sentia o chamado silencioso de um mundo mais compassivo, mais humano, onde a ternura podia florescer em pequenos gestos.

A vida de Martinho se desenrolava como um duelo contínuo entre luz e sombra — o frio das campanhas militares e o calor da fé, a brutalidade da espada e a suavidade de um gesto generoso. Ainda jovem, converteu-se ao cristianismo na antiga Gália, a vasta província romana que corresponde, hoje, à França moderna, um ato que exigia coragem quase heroica, pois abraçar a fé ainda era desafiar os poderes do mundo.



Sua ação missionária e pedagógica, em conjunto com outros homens e mulheres de fé, foi decisiva para a cristianização da Gália — tanto que lhe surgiu o título de “Apóstolo da Gália” ou “Pai das Gálias”. Mas sua influência não se limitou a esta província: espalhou-se por outras regiões ocidentais do Império, plantando sementes de cultura, caridade e espiritualidade que sobreviveriam à própria queda do Império Romano do Ocidente, em 476.

Martinho ajudou a fundar as bases do monaquismo na Europa Ocidental, e seu exemplo de vida — corajoso, compassivo e disciplinado — inspirou reverência ainda em vida. Para aqueles que não sabem do que falo, o monaquismo é, antes de tudo, uma busca de silêncio e intensidade interior. Surgido nos primeiros séculos do cristianismo, é a vida de homens e mulheres que decidem afastar-se do ruído do mundo para se entregar a uma disciplina espiritual profunda, vivendo em mosteiros ou em solidão, dedicando cada gesto, cada palavra e cada silêncio à oração, à meditação e à caridade.

Não se trata apenas de renunciar aos bens materiais ou às distrações do cotidiano; trata-se de ouvir o tempo e o sopro da própria alma, de transformar o simples ato de levantar, cozinhar ou caminhar em um ritual de presença e contemplação. Cada pedra de um mosteiro, cada caminho pelo jardim, cada manto usado com modéstia, se torna testemunha de uma vida dedicada à espiritualidade e à disciplina.

No coração do monaquismo está a ideia de que o espírito se fortalece no isolamento e na repetição, mas também na comunhão com os outros, na oração compartilhada e nos pequenos gestos de caridade. É uma vida que busca equilibrar o silêncio com o serviço, a solidão com a humanidade, a renúncia com a compaixão.

Martinho de Tours foi um dos pioneiros desse modo de vida na Europa Ocidental, mostrando que o monaquismo não é apenas retiro, mas um caminho de grandeza interior, generosidade e memória duradoura. Cada gesto, cada ato de cuidado ou ensino, deixava um eco duradouro, um legado que moldaria a formação da civilização cristã europeia, lembrando-nos de que a verdadeira grandeza não se mede em conquistas militares, mas na generosidade do espírito humano.

Ao atingir a adolescência, aos quinze anos (331 d.C.), Martinho foi alistado pelo pai na cavalaria do exército imperial — uma tentativa de mantê-lo próximo e, talvez, afastá-lo da Igreja nascente. Mas a intenção paterna revelou-se inútil: o jovem Martinho continuava fiel aos ensinamentos cristãos, especialmente à prática da caridade, como se sua alma tivesse feito um pacto silencioso com a compaixão, intocado pela disciplina militar.

Na Gália, a vasta província romana que hoje conhecemos como França, Martinho serviu como soldado, percorrendo caminhos frios e cidades ruidosas, mas nunca abandonando a luz que o cristianismo acendera dentro dele. Foi nesse período que se desenrolou o episódio que atravessaria os séculos: o repartir do manto.

Conta-se que, por volta de 337, aos 21 anos, próximo da cidade de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens, capital da Picardia), aconteceu o milagre da capa, que logo mais apresentarei em detalhes para vocês.

Durante as décadas seguintes, Martinho dedicou-se a cultivar a fé, a caridade e o monaquismo, ensinando, ajudando os pobres e vivendo entre mosteiros e comunidades cristãs, mesmo enquanto a Europa ainda fervilhava com crenças antigas. Cada dia parecia forjar seu espírito, equilibrando o rigor da disciplina e a suavidade da compaixão, preparando-o para o papel que o destino lhe reservava.

Em 371, já reconhecido por sua sabedoria e generosidade, Martinho tornou-se bispo de Tours, em um período em que a Europa fervilhava com crenças antigas e a cristandade tentava consolidar-se em meio a ritos pagãos. Sob sua liderança, construiu igrejas, fundou mosteiros e, sobretudo, tornou-se um farol de caridade e humildade. Diz-se que suas mãos curavam os doentes, que suas palavras consolavam os aflitos, mas que era na partilha do pão e no acolhimento dos pobres que residia sua maior magia. Cada gesto seu parecia carregar o eco das antigas tradições celtas, em que a solidariedade era ritual sagrado e o calor do fogo, da capa ou do pão, representava a luta contra o inverno implacável da alma e da natureza.

E, ainda hoje, a trajetória de Martinho nos chama. Não apenas como santo ou cavaleiro, mas como lembrança viva de que coragem e compaixão são inseparáveis. Ele cavalga por nossas memórias, por nossas mesas de outono, pelo aroma do pão quente que nos convida a continuar seu legado — a partilhar calor, a dividir vida, a transformar o gesto mais simples em eternidade.

O MILAGRE DA CAPA: QUANDO A GENEROSIDADE TRANSFORMOU O OUTONO NUM PEQUENO VERÃO

Saint Martin Dividing his Cloak, by Anthony van Dyck (1618)

São Martinho de Tours, cavaleiro de capa rubra, gesto generoso e olhar que atravessa séculos, ainda cavalga pelas nossas imaginações como uma sombra calorosa contra o frio do outono. A capa vermelha não era mero adorno — era o manto do soldado romano, tecido espesso contra os ventos da campanha, estampado com o rigor da ordem militar, o peso da disciplina e a luz dos estandartes. Martinho vestia esse manto porque, como filho de um tribuno, foi alistado na cavalaria imperial aos quinze anos, enviado a servir nas alas blindadas da Gália.

Ele chegava à estrada próxima de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens, na França, antiga Gália) montado no seu cavalo, a crina solta e os cascos ecoando sobre a pedra fria. A névoa envolvia os portões da cidade como um véu pesado, e as folhas despencavam em suspiros amarelos e ocre, anunciando o inverno que se aproximava com mãos de gelo.

A presença do jovem cavaleiro ali não parecia fora do lugar — a Gália romana estava pontilhada de limitanei, tropas de fronteira que patrulhavam as estradas; estandartes e símbolos da autoridade imperial, os signa militaria, ondulavam ao vento, lembrando a todos da ordem do império; e as unidades montadas, os equites, moviam-se com a disciplina silenciosa de quem garantia a paz e mantinha a tessitura da vida urbana intacta.

Martinho, cavaleiro de capa rubra, trajava o paludamentum, manto militar geralmente preso por um broche no ombro, que balançava suavemente ao ritmo dos cascos do cavalo. O vermelho não era apenas cor, mas símbolo: coragem, força e prontidão para o combate, um sinal de distinção que destacava o oficial no campo de batalha. Ao mesmo tempo, o tecido tinha uma função prática — disfarçava o sangue, lembrança silenciosa da fragilidade da vida que se desenrolava entre guerras e fronteiras.

Ainda assim, Martinho se movia com uma naturalidade rara: jovem cavaleiro, membro da cavalaria, detentor de disciplina e autoridade, carregava no peito a semente da compaixão. Sob aquele manto de poder, pulsava um coração capaz de aquecer o frio do outono e estender calor humano mesmo aos que nada tinham. A capa vermelha, que marcava sua posição no mundo, tornava-se ao mesmo tempo instrumento de bondade, promessa silenciosa de misericórdia que iria atravessar séculos.

Martinho usava a capa não por vaidade, mas por dever; nele estavam os símbolos da autoridade, da proteção e da tradição militar. Aquele tecido vermelho era arma silenciosa contra o frio, armadura contra o desespero, identidade que o império havia lhe conferido. E, no entanto, dentro dele, no íntimo de seu coração, vibrava uma outra veste — a da compaixão, a da partilha, a da fé emergente que recusava calar-se.

Preciso dizer que aprendi um pouco de latim, não por vaidade, mas para ouvir os ecos das palavras antigas, para compreender textos que atravessaram séculos, testemunhos de mundos que já não existem. Na minha época de estudos mitológicos, cada frase em latim era uma porta que se abria para os deuses, para os homens e para os gestos que moldaram a história. E, pro conat disso, resolvi incluir estas palavras de Sulpicius Severus não apenas como registro histórico, mas como encantamento: recitá-las é tocar o passado, perceber o presente e, talvez, semear uma centelha que alcançará o futuro. O gesto de Martinho, congelado na memória das palavras, continua a aquecer corações, lembrando-nos da compaixão e da generosidade que atravessam eras.

«Quodam itaque tempore, cum iam nihil praeter arma et simplicem militiae vestem haberet, media hieme, quae solito asperior inhorruerat, adeo ut plerosque vis algoris exstinxeret, obvium habet inporta Ambianensiumcivitatis pauperem nudum: qui cum praetereuntes ut sui misererentur oraret omnesque miserum praeterirent, intellexit vir Deoplenus sibi illum, aliis misericordiam non praestantibus, reservari. Arrepto itaque ferro, quo accinctus erat, mediam dividit partemque eius pauperi tribuit, reliqua rursus induitur.» Fonte: SEVERUS, Sulpicius. Vita sancti Martini. In: HALM, Karl (ed.). SulpiciiSeveri libri qui supersunt. Wien: CSEL1, 1866. 

“Num certo tempo, portanto, quando já não possuía nada além das armas e das vestes simples da milícia, no meio do inverno, que mais severo que o habitual se tornara, de modo que a força do frio extinguira a maioria, encontrou à porta da cidade dos Ambianos um pobre nu. E, quando os que passavam por ele não cessavam de rogar que se compadecessem dele e todos continuavam a passar adiante, aquele homem cheio de Deus compreendeu que aquele homem, por quem outros não demonstravam misericórdia, era guardado para si. … E então, tendo agarrado a espada com que estava cingido, dividiu ao meio aquela capa, e a parte dela concedeu ao pobre, e a outra voltou a vestir.” 

Essas palavras em latim não são meramente história: são um portal, uma introdução, um sussurro que atravessa os séculos. Elas nos preparam para o instante que se desdobra à nossa frente, para o gesto que Martinho realizou naquela manhã fria, à porta de Amiens.

O latim, com sua cadência ancestral, carrega o peso e a solenidade do passado, como se cada termo trouxesse consigo o sopro do vento gelado, o relincho do cavalo e o calor da compaixão prestes a se revelar. Agora, adentro o coração da narrativa, aquele instante que, ao longo dos séculos, continua a nos tocar e a aquecer nossas almas.

Numa manhã em que o vento parecia arrancar da terra cada gota de calor, Martinho viu o mendigo: carne e ossos, tremendo à porta de Amiens (na Gália), quase dissolvendo-se no ar gelado. A cidade bloqueava-se na rotina e passava, mas Martinho parou. Desmontou, a espada reluzindo um instante contra o céu encoberto. A lâmina cortou a capa ao meio. Ele envolveu o pobre homem não apenas com lã, mas com dignidade e ternura. Uma metade da capa compartilhada — um gesto que rasga o tecido e abre o coração, dividindo calor, esperança e humanidade. A outra metade permaneceu com Martinho, como lembrete de que a verdadeira generosidade não anula o próprio ser, mas o expande, tornando o mundo inteiro um pouco mais quente.

Naquele instante, a capa rubra deixou de ser símbolo de poder para se tornar sinal de misericórdia. O frio recuou, o sol se fez presente e o outono hesitou. Martinho mostrou-nos que nem todo cavaleiro monta por glória — alguns montam para ousar a ternura, para resgatar o calor humano, para vestir o invisível.

E então, como se o universo tivesse guardado seu olhar para esse gesto de bondade, algo extraordinário aconteceu: a neblina recuou, os ventos cessaram, e a chuva deu lugar a um sol tímido, dourado como um pássaro recém-desperto. As pedras, banhadas de orvalho, brilharam como se reconhecessem a justiça do gesto. Por três dias, uma luz suave dominou o outono, aquecendo a terra e o coração das pessoas — um fenômeno que passou a ser lembrado como o “Verão de São Martinho”, breve e milagroso, tão luminoso quanto a generosidade que o provocou.

Naquela noite, Martinho teve um sonho — ou talvez estivesse desperto em um limiar entre o real e o sagrado. Viu Cristo vestido com a metade da capa que havia dado ao pobre, e ouviu entre os anjos: “Aqui está Martinho, ainda catecúmeno, que me vestiu com este manto.” A partir desse instante, seu coração se incendiou. A indiferença desapareceu, e surgiu uma vida inteira dedicada à caridade, ao acolhimento e à construção de um reino feito não de espadas, mas de misericórdia.

O milagre da capa não foi apenas o calor físico que aqueceu um homem ao frio; foi o acontecimento que moldou uma alma, o instante em que Martinho se tornou farol para aqueles que ainda buscariam consolo e compaixão em um mundo áspero. O gesto, simples e extraordinário, continua a ecoar: cada capa dividida, cada pão compartilhado, cada mão estendida ainda é um eco daquele cavaleiro de capa rubra, atravessando os séculos com ternura e coragem.

Mas é preciso lembrar que a Gália era então domínio dos deuses do império romano, um panteão herdado dos gregos, fértil em figuras e rituais, politeísta e majestoso. Mesmo sob essa ordem e disciplina, a terra ainda guardava os sussurros antigos dos druidas, o perfume das florestas sagradas e o murmúrio dos rios que percorriam vales secretos.

Nas aldeias rurais, entre carvalhos venerados e círculos de pedra esquecidos pelo tempo, ecoavam os ritos celtas: celebrações do sol, do fogo, da colheita, memórias de um mundo que respeitava o ritmo da natureza e reverenciava cada mudança de estação.

Martinho cavalgava por essas terras onde a autoridade do império e a disciplina militar se entrelaçavam com a memória viva dos deuses romanos e dos ancestrais celtas, que sentiam o frio do outono como prenúncio e o calor do sol como bênção. Foi nesse entrelaçar de mundos — o concreto do império e o sagrado do bosque — que o milagre da capa encontrou seu cenário perfeito, como se cada folha soprada pelo vento carregasse consigo um convite silencioso à generosidade e à compaixão.

Antes de a espada de Martinho riscar o céu da Gália e de a capa rubra se rasgar em bondade, o solo em que ele cavalgava já carregava o eco antigo dos celtas — aqueles que chamavam a terra de Gallia Celtica, onde as tribos percorriam florestas densas, celebravam os ciclos do ano em ritos ao redor do fogo e sentiam os ventos assoprarem não só entre as árvores, mas também no coração do mundo.

Assim, quando Martinho apareceu em seu paludamentum vermelho, ele encontrou um solo que já conhecia o ritual da partilha, o fogo que salvava e o manto que aquecia mais que o corpo — aquecia a alma. E o milagre que ele protagonizou não rasgou apenas o tecido da capa, mas lembrou àquela terra antiga que a compaixão se assemelha ao sol que inesperadamente rompe a neblina de novembro, exatamente como nas antigas feiras celtas em que a luz retornava entre as estações.

Curiosidades abundam, e a figura de São Martinho se confunde com a memória viva dos deuses cavaleiros da tradição celta, guardiões das colheitas e protetores da generosidade; pois, embora na Gália romana não houvesse cavaleiros como os medievais, os deuses e heróis celtas montavam simbolicamente sobre os corcéis da força, do poder e da sabedoria, atravessando o mundo humano e o espiritual.

É preciso lembra: na tradição celta, não existia exatamente o “cavaleiro” como no mundo romano ou medieval, mas muitos deuses e heróis galopavam nas correntes invisíveis entre os mundos, carregando em seus corcéis a energia da guerra simbólica, da fertilidade e da transformação.

O cavalo, sagrado, era ponte entre o visível e o invisível, entre o humano e o divino, entre o palpável e o sussurro do vento nos bosques antigos, e aqueles que o montavam — homens ou divindades — carregavam nas rédeas não apenas velocidade e coragem, mas a própria energia da vida e da fertilidade.

 O cavalo e seu cavaleiro eram mais que força e velocidade; eram a encarnação do poder sagrado, da liberdade que atravessa mundos, e da audácia que só a coragem guiada pelo coração desperta.

Entre essas divindades celta, Epona, senhora dos cavalos, guardiã das viagens e da fecundidade, move-se silenciosa, como sombra protetora sobre cada estrada e cada campo, inspira a confiança silenciosa de quem parte e de quem retorna; Macha, deusa da guerra e da soberania, corre veloz sobre os rios e planícies, lembrando que a força da coragem pode rasgar o frio da indiferença, que a coragem é também a arte de enfrentar o inevitável; Nuada Airgetlám, rei guerreiro da Tuatha Dé Danann, empunha sua espada reluzente e cavalga entre céus e terras, oferecendo autoridade e justiça àqueles que ousam enfrentar o destino.

                                                  A deusa celta macha

                         Epona e seus cavalos, de Köngen, Alemanha, cerca de 200 a.C.

o deus Nuada Airgetlám tinha um braço de prata, e seu epíteto "Airgetlám" significa "braço de prata"

E assim, depois de galoparmos pelos bosques e rios sagrados da tradição celta, onde deuses e heróis cavalgam entre mundos invisíveis, a paisagem se abre para outra presença antiga e poderosa: a Gália de Martinho não era apenas terra de druidas e florestas encantadas, mas também chão onde o politeísmo greco-romano reinava lado a lado com os cultos celtas.

Ali, deuses que conhecemos de épicos e templos, cavalos sagrados e heróis divinos cruzavam simbolicamente com os corcéis e cavaleiros humanos, mostrando que o mesmo sopro de sacralidade podia habitar o mundo visível e invisível, do bosque à planície romana, da aldeia celta ao templo de mármore. É nesse encontro de mitologias, nesse entrelaçar de tradições e poderes, que se abre o caminho para os corcéis de Poseidon, o Hippios, e a memória dos deuses que carregam força e mistério sobre suas crinas.

Na tradição greco-romana, os cavalos também eram guardiões sagrados, animais que carregavam deuses sobre suas crinas, transportando poder, força e mistério. Poseidon, em sua forma mais profunda e ancestral, era chamado Ἵππιος – Hippios, o “Senhor dos Cavalos”, e em cada relincho sentia-se o eco das ondas do mar, da terra tremendo e das tempestades que só ele podia dominar. Os corcéis eram sua extensão, velozes como ventos, fortes como rochedos, e os cavalos sagrados tornavam-se pontes entre o humano e o divino, ligando campos e mares, guerreiros e deuses.

Quando Roma absorveu os deuses gregos, Poseidon se fez Netuno, e embora seu vínculo com os mares permanecesse mais central, a sacralidade dos cavalos não desapareceu; eles continuavam a carregar a autoridade e a força do deus, como símbolos silenciosos de disciplina, fertilidade e movimento entre mundos visíveis e invisíveis.

Ao mesmo tempo, há vínculos que ligam a deusa da agricultura com a relação com os cavalos e ao surgimento das estações:  Ceres, como os romanos a chamavam, era a terra generosa e os grãos da colheita, mas também o silêncio e a sombra da ausência. Quando sua filha, Perséfone, conhecida em Roma como Proserpina, foi raptada por Hades e levada para o reino das sombras, Ceres iniciou uma busca incansável, vasculhando cada canto do mundo, cada bosque e cada rio, em desespero que fazia a terra murchar e o céu tremer. Nem mesmo a deusa Hécate, guardiã das encruzilhadas e da magia, nem Hélio, que tudo via do alto do sol, puderam conter sua dor, embora lhe mostrassem o paradeiro da filha; a ausência de Proserpina congelava a terra, e a fome e o inverno se abatiam sobre os campos.


Durante essa busca, a deusa encontrou-se perseguida por Poseidon Hippios, seu irmão e Senhor dos Cavalos, que a desejava. Para escapar de sua insistência, Ceres transformou-se em égua, galopando entre os cavalos de Oncius, buscando refúgio na Arcádia. Poseidon, porém, assumiu a forma de um garanhão e, rompendo sua fuga, a violou. Dessa união nasceu Arion, o corcel imortal, espírito veloz que encarnava a união entre cavalos e divindades, tornando-se ponte viva entre o céu e a terra, entre o humano e o divino, entre a semente enterrada e o pão que brota nas mãos do homem.

Marcada pela ira e pelo luto, Ceres assumiu a forma de Deméter Erinys, a Furiosa, e de Deméter Melaina, a Negra, vestida de sombras, recusando-se a comer, beber ou interagir com o mundo, enquanto os campos secavam e a vida parecia suspensa. Quando finalmente se purificou no rio Ladon, recebeu também o epíteto de Deméter Lusia, a Purificadora, mostrando que até na dor e na humilhação há renovação e ritual, e que cada estação, cada seca e cada abundância são parte de um ciclo sagrado que atravessa tempo, memória e alimento.

O mito, espalhado entre Phigalia e Thelpusa na Arcádia, entre Tilphusa na Beócia e outros santuários, celebra não apenas a fertilidade da terra, mas também a força das águas, do cavalo e da divindade, e a dança eterna entre dor e esperança, entre perda e regeneração. Arion, nascido da fúria e da fuga, é testemunho de que a vida pulsa mesmo através da violência e da sombra, lembrando que cada gesto, cada grão, cada pão partilhado carrega consigo a memória dos deuses e a coragem de quem os serve.

Foi da angústia de Ceres, da busca incansável por sua filha Proserpina, que o ritmo das estações se fez visível aos homens. Enquanto a deusa percorria os campos secos e os bosques silenciosos, a terra murchava, os rios diminuíam e o pão desaparecia das mesas; o inverno se alongava como sombra persistente sobre o mundo. Cada passo de Ceres era uma nota no lamento da natureza, cada vestígio de sua dor, uma marca de aridez e ausência. Somente quando Zeus, movido pelo equilíbrio entre deuses e mortais, interveio, ordenando que Proserpina passasse parte do ano com a mãe e parte com Hades, a vida voltou a fluir: as sementes germinaram, os ramos se ergueram e a fertilidade regressou aos campos. Assim, a alternância de presença e ausência da deusa, de calor e frio, de seca e abundância, transformou-se no ciclo sagrado das estações — memória viva de que a perda e a reunião, a dor e a alegria, são fios invisíveis que tecem o tempo, conectando o divino ao humano, a mãe à filha, o campo ao pão, e lembrando que cada estação, cada colheita e cada fome, nasce da dança eterna entre amor, saudade e generosidade.

Com a vida das estações, veio o ciclo dos grãos, que voltaram a oferecer alimento ao mundo, como se a simples felicidade da mãe por ter sua filha de volta — ainda que por apenas seis meses do ano — pudesse restaurar a terra inteira. Assim, nos mitos, nos corcéis e cavaleiros sagrados, cada cavalo, cada rédea segurada por mortal ou divindade, era mais que transporte: era linguagem do sagrado, pulsação entre céu e terra, lembrete de que coragem, poder e liberdade caminham sempre juntos, entrelaçados.

Cada um deles galopa na memória da terra e no sopro dos ventos de outono, revelando que coragem e compaixão podem se unir, que generosidade é poder que se oferece, e que até o mais simples gesto — como compartilhar o calor de uma capa vermelha — ecoa com a força de um milênio, conectando cavaleiros, deuses e homens numa dança eterna entre sombra e luz, lembrando-nos que cada passo, cada relincho, cada estação, é parte de um pacto invisível que atravessa o tempo e a memória.

É nesse imaginário que Martinho se insere: romano e cavaleiro, jovem militar, mas com o coração já incendiado por uma compaixão que transcende ordens e insígnias. Cada passo de seu cavalo sobre a terra galesa ou galorromana ressoa como eco antigo do sagrado, do bosque e da chama que nunca se apaga, lembrança viva de que o humano e o divino se entrelaçam sempre que a generosidade se manifesta, e que coragem, poder e bondade caminham juntos, entre relinchos, vento e memória.

E assim, da memória dos cavalos sagrados, das estações que surgem e se recolhem, e do gesto generoso de um homem que se tornou lenda, ergue-se a ponte para o mundo visível: a compaixão concreta, que se manifesta em calor, alimento e cuidado. Martinho, cavaleiro antigo e símbolo de generosidade, ainda carrega consigo a aura de divindades ancestrais, um resíduo do sagrado que o cristianismo, de alguma forma, jamais conseguiu apagar por completo. O frio do outono, as folhas que caem e o vento que anuncia mudança tornam-se testemunhas desse encontro entre mito e cotidiano, lembrando que a dádiva e a bondade não se limitam à memória: prolongam-se no toque das mãos, no calor compartilhado, no alimento que nutre mais que o corpo — nutre a alma.

E é desse mesmo fio que liga cavalos sagrados, deuses, estações e gestos humanos que, séculos depois, nasce um símbolo concreto de generosidade: o pão de São Martinho. Como o gesto do cavaleiro que estende sua capa ao pobre, o pão surge como lembrança palpável da compaixão que atravessa tempo e memória, traduzindo o calor do coração em alimento compartilhado. Não é coincidência que, em regiões onde as tradições celtas, romanas e cristãs se entrelaçaram, esse pão se transforme em ritual: ele carrega o eco das estações que Deméter/Ceres rege, o sopro do outono que anuncia mudança, e a lembrança de que a bondade, quando se torna gesto, atravessa eras, une mundos e continua a pulsar na mesa de quem se dispõe a partilhar.

O PÃO DE SÃO MARTINHO: UM RITUAL DE OUTONO NA ÚMBRIA

Nas tradições populares, sobretudo nas derivações celtas e rurais, o gesto de Martinho converteu-se em rito e símbolo: o cavaleiro generoso que enfrenta o frio, a mudança repentina do clima como resposta ao ato humano, o pão que nasce da partilha, a capa que aquece e se transforma em memória. Martinho, assim, passa a ser mais do que homem: torna-se ponte entre as estações, entre sombra e luz, entre o frio que comprime e o fogo que liberta.

Cada pão assado em seu nome, cada mesa de novembro, carrega essa aura — o desejo de que o calor não seja apenas físico, mas também espiritual, que o alimento seja gesto, o pão seja promessa, a capa seja símbolo. Mas por que pão? Por que o gesto de Martinho, dividido entre ele e o pobre, se transforma em massa para o forno?

Porque o pão, alimento ancestral e universal, é a metáfora perfeita do que o santo nos ensinou: partilhar, dar calor, oferecer sustento e conforto. No tempo das aldeias medievais, o pão era riqueza, segurança, vida. Preparar pão em sua homenagem é refazer aquele gesto: transformar ingredientes simples em sustento compartilhado, como Martinho transformou sua capa em calor, e a indiferença em humanidade.

Assar pão para São Martinho é, então, muito mais do que tradição: é ritual. Cada mistura de farinha, água e fermento carrega a intenção de generosidade. Cada dobra da massa, cada pincelada de ovo na crosta, é metáfora da capa aberta, do calor estendido. O aroma que se espalha pela cozinha, invadindo a casa, é quase um feitiço de outono — lembrança do “verão de São Martinho”, quando o sol surge após a tempestade, aquecendo a terra e os corações. Nesse gesto simples, sentimos o toque do passado: a mão generosa do cavaleiro ainda percorre nossas mesas, aquece nossas mãos, nos lembra que cada ato de partilha cria calor que vai muito além do corpo.

Cada pão assado em sua homenagem carrega essa memória como um pequeno milagre cotidiano. A massa leveda com paciência, cresce lentamente, dourando na crosta macia que guarda calor e histórias. Ao partir a primeira fatia, sentimos algo além do sabor: o encontro de eras, a mão generosa do cavaleiro que ainda nos toca, o sopro do passado que se mistura com o presente — o outono do Norte e as tempestades do Sul parecem convergir no aroma que se espalha pela cozinha.

O pão, nesse contexto, torna-se metáfora viva: promessa e lembrança de que até nos dias mais cinzentos, um gesto de calor pode transformar a vida de alguém. O cavaleiro antigo, a capa vermelha, o pão compartilhado e o fogo do bosque — todos entrelaçam passado e presente, Romano e Celta, humano e divino. Ainda hoje, na crosta dourada e perfumada de um pão recém-saído do forno ou no vento que sopra folhas pelo outono, sentimos o sopro daquela manhã em Amiens, quando Martinho ensinou que coragem e compaixão não são inimigas, mas irmãs, que montam juntas pelo mundo, atravessando séculos e corações, como eco daquilo que foi e do que ainda pode ser.

Assim, entre brumas suaves e folhas que caem, quando o frio se insinua nas cidades do Norte Global ou as tempestades surpreendem o Sul Global, a tradição da Úmbria nos recorda que a memória não se conserva apenas em textos ou lendas, mas também em sabores e gestos, e que cada pão compartilhado renova o calor da generosidade, conectando o passado e o presente em um ritual vivo.

 É neste cenário que o Pão de São Martinho, conhecido como Pan Nociato ou Pan Caciato, se revela — um pão que não é apenas alimento, mas ritual, símbolo e memória viva.

A história escrita deste pão remonta a um antigo livro da culinária popular de Fabriano (AA. VV.; Angelini, P.; Balilla Beltrame, A.C.; Lipparoni, N.; Picchi, G.; Trecciola, A. Antologia della cucina popolare. Fabriano: Comunità Montana dell’Esino-Frasassi, 1993, reeditado em 1993, p.44), que preserva receitas tradicionais com variantes doces e salgadas, algumas já preparadas nas regiões de Sassoferrato e Matelica. No entanto, na Úmbria, o pão toma uma forma própria: um pequeno pão rústico, aromático, recheado de nozes recém-colhidas, coberto com queijo pecorino e perfumado com pimenta preta (pimenta do reino), às vezes enriquecido com passas ou um toque de vinho, que o torna simultaneamente simples e complexo, humilde e generoso — exatamente como o cavaleiro Martinho de Tours que lhe empresta o nome.

Este pão nasce como celebração da época da colheita, do outono pleno, do chamado “Verão de São Martinho” — aqueles dias inesperadamente amenos ao redor de 11 de novembro, quando, segundo a lenda, após São Martinho dividir sua capa com um mendigo congelado, o céu se abriu e o sol devolveu calor aos ossos e à alma. A Úmbria, com suas vilas de Assis, Perugia, Todi e San Martino in Campo, preserva esta tradição não apenas em mesas familiares, mas também em pequenos santuários culinários, como a Santino Panetteria, onde cada pão é moldado com reverência e atenção aos detalhes.

Cada ingrediente do Pan Nociato tem sua história. As nozes, frutos da terra recém-colhida, representam a generosidade da estação; o pecorino, sólido e pungente, dá força e sabor, lembrando que a bondade exige substância; a pimenta, sutil e inesperada, desperta os sentidos, tal como o gesto de Martinho desperta corações adormecidos. Moldar a massa é um ato de contemplação; esperar que cresça, sentir o aroma se espalhando pela cozinha, é uma meditação sobre o tempo, a paciência e a ligação entre passado e presente. Cada pão que sai do forno é ao mesmo tempo ritual e alquimia: a transformação do simples em extraordinário, do pão em símbolo, da massa em memória viva.

Historicamente, este pão não existe apenas na cozinha: ele permeia a cultura local, figurando até em poesias e tradições populares.

Guido Discepoli, poeta umbriense, evoca em seus versos o Pan Nociato como parte da celebração de novembro, inserindo-o no ciclo de memórias e climas peculiares da estação. Assim, o pão se torna ponte entre eras: a lenda do legionário romano que se converteu em bispo e padroeiro dos viajantes e viticultores, e o viajante moderno que, ao partir a primeira fatia, sente calor humano e memória ancestral se fundirem no instante presente.

Antes disso, o Anuário da cidade de Todi, datado de 1927, registra o ritual de preparo do “pan pepato”, um pão enriquecido com nozes e, às vezes, com uvas passas, consumido tradicionalmente durante o outono, especialmente pelos trabalhadores nos campos. Um pão que carregava em si o esforço e a energia da colheita, mas também o aconchego das memórias de família e comunidade.

A receita, conforme descrita no anuário, diz: “Pegue um punhado de nozes picadas, um punhado de uvas passas, um punhado de queijo pecorino em cubos pequenos, uma pitada do mesmo queijo ralado, uma pitada de pimenta, um pouco de sal, cinco ou seis cravos-da-índia, meio copo de vinho tinto, banha e azeite de oliva a gosto, e misture tudo, deixando a massa descansar por cerca de dez horas. Em seguida, junte um quilo e meio de massa de pão, formando uma mistura que deve ser dividida em três partes, como pães separados. Em cada pão, faça um corte profundo em forma de cruz. Quando a massa estiver fermentada, asse em forno de tijolos.”

Este pão, rico em sabor e energia, era o companheiro fiel dos dias de trabalho nos olivais de novembro, sustentando homens e mulheres durante a colheita. Seu tamanho modesto permitia ser saboreado sem pesar, um pequeno sustento que aquecia corpo e espírito. Embora existam variações doces e salgadas, a receita de Todi permanece clássica: a maciez da banha contrasta com o agridoce das uvas passas e o sal do queijo pecorino, criando uma experiência que atravessa séculos.

De fato, preparações semelhantes já eram conhecidas no mundo clássico: o patriarca Sofrônio, no século VI, mencionava um pão de queijo para crianças, enquanto em Roma antiga existiam múltiplas variantes de pães enriquecidos, que evoluíram ao longo do tempo até chegar à tradição atual.

O “pan nociato”, também chamado “pan caciato”, tornou-se assim uma verdadeira iguaria, preservando-se nas mesas da Úmbria e difundindo-se de Todi para toda a região. Sua importância cultural e afetiva é tal que mereceu lugar de destaque no poema Novembro de Guido Discepoli, incluído na obra Coletânea de poemas e canções populares religiosas de algumas cidades da Úmbria, editada por Oreste Grifoni – hoje, infelizmente, fora de catálogo. Um pão que é, ao mesmo tempo, sustento, memória e celebração da estação.

No ápice desta experiência, quando o pão se revela dourado, crocante por fora e macio por dentro, percebemos que cada fatia oferecida é um ato de partilha e compaixão. Não é o pão sozinho que importa, mas o gesto: dividir é transcender, como Martinho transcendeu o seu tempo com um simples corte de capa. É um momento em que o sagrado encontra o cotidiano, a lenda se mistura ao aroma do forno, e o outono, com sua luz dourada e dias instáveis, se torna palco para pequenos milagres comestíveis — e eternos.

O GRAN FINALE: O PÃO, A CAPA E O SOL DE SÃO MARTINHO

E, assim, quando o Pão de São Martinho emerge do forno, dourado, aromático, pleno de calor e memória, sentimos algo que transcende o paladar: uma ponte entre séculos, entre mãos que moldaram massa e mãos que cortaram capas, entre as neblinas frias do Norte e o sol fugaz que aqueceu a Úmbria. Cada pedaço partilhado carrega o gesto antigo do cavaleiro de capa rubra — generosidade que se torna alimento, coragem que se torna conforto. O aroma se espalha, quase sagrado, como se cada grão de farinha, cada noz triturada, cada fio de queijo pecorino contivesse a própria alma do santo e o sopro das estações.

Martinho, o legionário que abandonou a espada pelo abraço da misericórdia, cavalga invisível ainda, seus passos ecoando entre vilas e colinas, entre igrejas silenciosas e cozinhas cheias de risos e calor. O pão, com sua crosta macia e interior cheio de vida, é a tradução comestível de um milagre que se repete: a luz inesperada de um sol de outono, o calor que nasce do coração humano, o instante em que o gesto mais simples se torna eterno. É a Úmbria inteira, sua terra generosa, seu outono dourado, suas histórias guardadas em afrescos e mesas, que nos envolve — um abraço invisível que atravessa os séculos.

E, então, ao oferecer a primeira fatia, sentimos a plenitude: não há mais passado nem presente, apenas o instante sagrado da partilha, a alquimia da generosidade e do alimento. O Pão de São Martinho é mais que pão, mais que tradição: é poema, é história, é magia palpável, e cada mordida nos lembra que a vida, como o outono, é feita de contrastes — do frio e do calor, da sombra e da luz, da fome e da doçura. E nesse instante, sob o sol que rompeu a neblina, entendemos que o milagre não está apenas no gesto do santo, mas em cada coração que escolhe aquecer outro coração, em cada mesa onde o pão se torna promessa, em cada lembrança que se torna eterno.

O pão termina, mas o encanto permanece. Como Martinho, atravessamos o tempo com coragem, partilhamos calor, e descobrimos que o outono, a Úmbria, e até mesmo nossas cozinhas, podem ser templos de compaixão, poesia e magia. E assim, ao fechar os olhos e respirar profundamente o aroma do pão, sentimos: o mundo inteiro se ilumina com o gesto mais simples, e a história, a lenda e o sabor se tornam um só — perfeito, apoteótico, infinito.

E então o pão repousa, dourado e perfumado, mas a magia não termina. Como Martinho, seguimos viajando pelo tempo, dividindo não apenas calor, mas vida, histórias e memórias. Cada fatia é um gesto de generosidade, cada aroma que se espalha pela cozinha é um sussurro do passado que se curva ao presente. No fulgor do forno, no estalar da crosta, no toque macio da massa, sentimos a Úmbria inteira — suas colinas, suas vinhas, suas igrejas silenciosas e suas aldeias escondidas — pulsando em harmonia com o outono do Norte e os ventos tempestuosos do Sul.

O gesto do cavaleiro, a capa compartilhada, o milagre do sol de novembro, a paciência da massa levedando: tudo se funde em um instante sagrado, quase místico. O pão de São Martinho deixa de ser alimento e se torna oração, poema, pintura viva — um altar efêmero de calor humano. Respiramos profundamente, e no perfume de nozes, queijo e especiarias, o mundo inteiro se ilumina com a simplicidade de um ato de amor.

Assim, ao partir a última fatia, sabemos: não é o pão que termina, mas o encantamento que permanece, eterno e silencioso. Cada mesa, cada lar que acolhe esta tradição, se transforma em templo — onde a história, a lenda e a vida se entrelaçam, e onde o simples gesto de partilhar se eleva ao sublime. O Pão de São Martinho não é apenas receita: é memória, é luz, é eternidade em forma de alimento, e é, sobretudo, a promessa de que o calor da bondade humana pode atravessar séculos, atravessar ventos frios, atravessar vidas. 

PÃO CACIATO DI SAN MARTINO (versão salgada)

500 g de farinha de trigo

20 g de fermento biológico fresco (ou use 1 pacotinho de fermento pra pão seco, 13g)

220 ml de água morna

10 g de sal fino

25 g de azeite de oliva

250 g de passas

100 g de nozes picadas

250 g de queijo pecorino cortado em cubos

1/4 de colher de chá de pimenta-do-reino moída

Modo de preparo: Deixe as passas de molho em água morna por 10–15 minutos. Escorra e seque-as. Pique o queijo pecorino em cubos e as nozes. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Peneire a farinha na batedeira, adicione o sal e a pimenta, e uma parte do fermento dissolvido. Ligue a batedeira e adicione o restante do fermento, depois a água restante e o azeite. Se a massa parecer seca, adicione um pouco mais de água. Transfira a massa para uma superfície enfarinhada, sove um pouco, abra e incorpore as passas, nozes e queijo pecorino no centro, misturando bem. Modele a massa em bola e deixe crescer por 15 minutos coberta com pano. Divida a massa em 9 porções, modele em bolas, disponha 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas cada. Deixe crescer 45–60 minutos. Pré-aqueça o forno a 180°C (com ventilador), coloque os pães e asse 5 minutos a 180°C, depois reduza para 160°C e asse mais 35–40 minutos até dourar. Retire do forno e deixe esfriar antes de servir.

Observação: A adição de pimenta-do-reino dá apenas um leve toque aromático que realça o sabor do queijo e das nozes sem sobrepujar os demais ingredientes.

Pan Nociato (doce)

500 g de farinha de trigo

20 g de fermento biológico fresco (ou 1 pacotinho, 13 g, seco)

220 ml de água morna

10 g de sal fino

25 g de azeite de oliva

300 g de passas (mais doces, podem ser sultanas)

150 g de nozes picadas

100 g de açúcar mascavo ou cristal

1/2 colher de chá de canela em pó

1/4 colher de chá de pimenta-do-reino (opcional, apenas para aroma)

Raspas de 1 limão (opcional, para aroma fresco)

Modo de preparo: Deixe as passas de molho 10–15 min em água morna, escorra e seque. Pique as nozes e reserve. Misture o açúcar, a canela e as raspas de limão. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Na batedeira, peneire a farinha, adicione o sal, a pimenta (se usar) e parte do fermento dissolvido. Ligue a batedeira, adicione o restante do fermento, a água e o azeite. Ajuste a consistência com um pouco mais de água, se necessário. Transfira para superfície enfarinhada, sove levemente e abra a massa. Incorpore passas, nozes e a mistura de açúcar/canela/raspas de limão. Modele em bola, cubra e deixe crescer 15 minutos. Divida em 9 porções, modele em bolas, organize 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas cada. Cresça 45–60 min. Pré-aqueça o forno a 180 °C (ventilado). Asse 5 min a 180 °C, depois reduza para 160 °C e asse 35–40 min até dourar.

 

 

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