Ontem, véspera do dia de São
Martinho, compartilhei aqui a receita de um bolo sueco em homenagem ao santo (se perdeu, veja AQUI.
Mais do que um simples doce, ele é um gesto que atravessa fronteiras e séculos
— um modo de lembrar que a cultura também se assenta à mesa, com suas histórias
silenciosas e seus símbolos de partilha. Há algo de profundamente humano nesse
gesto antigo: medir o açúcar, acender o forno, esperar que o calor transforme a
massa em lembrança. O aroma que se espalha pela casa não é apenas o de um bolo
— é o perfume do tempo em repouso, a tradução doce daquilo que não sabemos
dizer. Cozinhar é, talvez, a forma mais silenciosa de oração: um diálogo entre
o corpo e o passado, entre o desejo e a memória.
Um bolo, afinal, nunca é só
alimento. É uma pequena tentativa de deter o instante — de provar, com o sabor
e o calor, que ainda existe ternura no mundo, mesmo quando lá fora as estações
se confundem e a vida nos sopra com seus ventos frios.
Tentei, assim, oferecer não
apenas uma receita, mas um convite: que cada leitor e leitora permitisse que a
doçura aquecesse também sua própria mesa, reacendendo lembranças e sabores que
sobrevivem ao passar das estações.
Agora, com o fim do ano se
aproximando, o outono no Norte Global se faz sentir como um suspiro antigo — o
frio se instala com mãos invisíveis, delicadas e impiedosas ao mesmo tempo. Ele
acaricia e fere os campos, pinta de cinza as manhãs e deixa o ar saturado de
uma beleza melancólica, quase espiritual. É uma época em que o tempo parece
caminhar mais lentamente, como se o mundo se recolhesse para ouvir o próprio
coração.
E para ver como é irônico o
destino — nesses giros lentos e precisos com que a Terra desenha as estações —,
aqui, nestes lados do Sul Global, o Brasil floresce em plena primavera. Mas
somos um país de dimensões continentais, e até as estações se confundem, como
se o tempo, ao atravessar nossas fronteiras, perdesse a rigidez e se tornasse
sonho, miragem ou febre.
Ontem mesmo, enquanto o
Norte do mundo se recolhia sob o outono, parte do Sul brasileiro experimentava
a fúria da natureza — uma fúria tão intensa que se aproximava do sagrado. Três
tornados devastadores rasgaram o céu e a terra brasileira, levando consigo não
apenas o que era visível, mas também aquilo que se constrói em silêncio: a
esperança, o trabalho, o repouso das pequenas vidas.
Uma das cidades mais
atingidas foi Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná. O tornado, classificado como F3
na escala Fujita, varreu mais de oitenta por cento da área urbana, deixando
atrás de si um rastro de ruínas, seis mortos e uma comunidade mergulhada no espanto.
Tudo o que parecia sólido —
casas, árvores, caminhos — foi arrancado em minutos, como se o próprio céu
tivesse decidido lembrar-nos da sua antiga linguagem, aquela que fala em ventos
e trovões. Resta-nos o silêncio depois da tormenta, e essa certeza desconcertante
de que a natureza, em sua grandeza e desatino, ainda é a narradora mais
eloquente das nossas fragilidades.
E, ainda assim, há uma
espécie de harmonia sombria nisso tudo: como se o mundo, em sua coreografia de
luz e sombra, lembrasse a cada um de nós que nenhuma estação é estática, que a
serenidade e a destruição são irmãs que dançam juntas desde o princípio dos
tempos. Entre o doce e o devastado, entre o lar e a tormenta, seguimos
procurando o sentido — talvez no sabor morno de um bolo, talvez apenas na
capacidade humana de continuar acendendo o forno, mesmo quando lá fora o vento
parece querer apagar todas as chamas.
Ontem, o bolo sueco trouxe
calor e doçura — o consolo morno que só a casa conhece, o perfume que se
espalha como lembrança e se entranha nas horas. Mas hoje, neste dia de São
Martinho, é o pão que nos chama.
Não um pão qualquer, mas o
Pão de São Martinho: redondo, antigo, carregado de símbolos, onde o trigo se
mistura à lenda e o fermento parece guardar algo da respiração do próprio
santo.
Cada fatia é uma oferenda —
um pequeno sacramento de partilha, memória e permanência. No pão repousam ecos
de antigas histórias murmuradas à beira do fogo, quando o frio pedia abrigo e a
palavra ainda era consolo. Há lembranças de gentileza, gestos que atravessam os
séculos e se tornam milagre pela simples coragem de existir.
E há, sobretudo, uma magia
discreta — dessas que não resplandecem, mas sustentam. A alquimia silenciosa
entre a fé e a fome, entre o corpo que implora por alimento e a alma que, sem
saber, busca redenção. Em cada migalha há uma promessa: a de que o humano
persiste, mesmo quando o mundo parece desabar — e que o pão, humilde e morno, é
ainda a forma mais antiga de esperança.
Mas antes de conhecer o pão
e compreender o mistério que o habita, é preciso conhecer o homem — aquele que
o tempo, em sua lenta e reverente alquimia, consagrou santo. Porque antes do
milagre veio a compaixão; antes da lenda, um gesto humano — simples, ardente e
desarmado.
Sua história, feita de coragem e ternura, atravessa os séculos como uma chama que se recusa a apagar. E ainda hoje, se ouvirmos com atenção, é possível perceber sua voz — não um clamor, mas um sussurro — lembrando-nos de que toda santidade começa no gesto anônimo de cuidar do outro.
SÃO MARTINHO DE TOURS: LUZ E
GENEROSIDADE NO OUTONO DA VIDA
Martinho de Tours — em
latim, Martinus Turonensis — nasceu em 316 d.C., na cidade de Sabária
(Savaria), na província romana da Panônia, hoje Szombathely, na Hungria
moderna. Filho de um centurião, cresceu entre o rigor da disciplina militar e o
pulsar delicado de uma fé ainda jovem, tímida e muitas vezes perseguida. A
família em que nasceu não era cristã; sua educação seguia os caminhos da
religião de seus antepassados, a fé politeísta romana, com seus deuses
mitológicos, rituais e templos que perfumavam o ar com incenso e devoção.
Mas a curiosidade infantil
de Martinho o conduziu a lugares diferentes. Ainda menino, começou a frequentar
uma igreja cristã, onde era introduzido aos mistérios da doutrina, mesmo sem
ter recebido o batismo. Aos dez anos (326 d.C.), entrou para o grupo dos
catecúmenos — aqueles que se preparam para a imersão na fé — e ali sua alma
começou a despertar para uma fé que pulsava como um segredo guardado no
coração. Foi nesse ponto que Martinho começou a sentir os primeiros chamados
silenciosos de compaixão e luz, ainda criança, mas já com a força de um
espírito que buscava algo além do mundo visível.
Desde cedo, a tensão entre
espada e oração moldou seu espírito: de um lado, aprendia os ofícios do
império, a hierarquia da guerra, o frio da ordem; do outro, sentia o chamado
silencioso de um mundo mais compassivo, mais humano, onde a ternura podia florescer
em pequenos gestos.
A vida de Martinho se
desenrolava como um duelo contínuo entre luz e sombra — o frio das campanhas
militares e o calor da fé, a brutalidade da espada e a suavidade de um gesto
generoso. Ainda jovem, converteu-se ao cristianismo na antiga Gália, a vasta província
romana que corresponde, hoje, à França moderna, um ato que exigia coragem quase
heroica, pois abraçar a fé ainda era desafiar os poderes do mundo.
Sua ação missionária e
pedagógica, em conjunto com outros homens e mulheres de fé, foi decisiva para a
cristianização da Gália — tanto que lhe surgiu o título de “Apóstolo da Gália”
ou “Pai das Gálias”. Mas sua influência não se limitou a esta província:
espalhou-se por outras regiões ocidentais do Império, plantando sementes de
cultura, caridade e espiritualidade que sobreviveriam à própria queda do
Império Romano do Ocidente, em 476.
Martinho ajudou a fundar as
bases do monaquismo na Europa Ocidental, e seu exemplo de vida — corajoso,
compassivo e disciplinado — inspirou reverência ainda em vida. Para aqueles que
não sabem do que falo, o monaquismo é, antes de tudo, uma busca de silêncio e
intensidade interior. Surgido nos primeiros séculos do cristianismo, é a vida
de homens e mulheres que decidem afastar-se do ruído do mundo para se entregar
a uma disciplina espiritual profunda, vivendo em mosteiros ou em solidão,
dedicando cada gesto, cada palavra e cada silêncio à oração, à meditação e à
caridade.
Não se trata apenas de
renunciar aos bens materiais ou às distrações do cotidiano; trata-se de ouvir o
tempo e o sopro da própria alma, de transformar o simples ato de levantar,
cozinhar ou caminhar em um ritual de presença e contemplação. Cada pedra de um
mosteiro, cada caminho pelo jardim, cada manto usado com modéstia, se torna
testemunha de uma vida dedicada à espiritualidade e à disciplina.
No coração do monaquismo
está a ideia de que o espírito se fortalece no isolamento e na repetição, mas
também na comunhão com os outros, na oração compartilhada e nos pequenos gestos
de caridade. É uma vida que busca equilibrar o silêncio com o serviço, a
solidão com a humanidade, a renúncia com a compaixão.
Martinho de Tours foi um dos
pioneiros desse modo de vida na Europa Ocidental, mostrando que o monaquismo
não é apenas retiro, mas um caminho de grandeza interior, generosidade e
memória duradoura. Cada gesto, cada ato de cuidado ou ensino, deixava um eco
duradouro, um legado que moldaria a formação da civilização cristã europeia,
lembrando-nos de que a verdadeira grandeza não se mede em conquistas militares,
mas na generosidade do espírito humano.
Ao atingir a adolescência,
aos quinze anos (331 d.C.), Martinho foi alistado pelo pai na cavalaria do
exército imperial — uma tentativa de mantê-lo próximo e, talvez, afastá-lo da
Igreja nascente. Mas a intenção paterna revelou-se inútil: o jovem Martinho
continuava fiel aos ensinamentos cristãos, especialmente à prática da caridade,
como se sua alma tivesse feito um pacto silencioso com a compaixão, intocado
pela disciplina militar.
Na Gália, a vasta província
romana que hoje conhecemos como França, Martinho serviu como soldado,
percorrendo caminhos frios e cidades ruidosas, mas nunca abandonando a luz que
o cristianismo acendera dentro dele. Foi nesse período que se desenrolou o episódio
que atravessaria os séculos: o repartir do manto.
Conta-se que, por volta de
337, aos 21 anos, próximo da cidade de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens,
capital da Picardia), aconteceu o milagre da capa, que logo mais apresentarei
em detalhes para vocês.
Durante as décadas
seguintes, Martinho dedicou-se a cultivar a fé, a caridade e o monaquismo,
ensinando, ajudando os pobres e vivendo entre mosteiros e comunidades cristãs,
mesmo enquanto a Europa ainda fervilhava com crenças antigas. Cada dia parecia
forjar seu espírito, equilibrando o rigor da disciplina e a suavidade da
compaixão, preparando-o para o papel que o destino lhe reservava.
Em 371, já reconhecido por
sua sabedoria e generosidade, Martinho tornou-se bispo de Tours, em um período
em que a Europa fervilhava com crenças antigas e a cristandade tentava
consolidar-se em meio a ritos pagãos. Sob sua liderança, construiu igrejas, fundou
mosteiros e, sobretudo, tornou-se um farol de caridade e humildade. Diz-se que
suas mãos curavam os doentes, que suas palavras consolavam os aflitos, mas que
era na partilha do pão e no acolhimento dos pobres que residia sua maior magia.
Cada gesto seu parecia carregar o eco das antigas tradições celtas, em que a
solidariedade era ritual sagrado e o calor do fogo, da capa ou do pão,
representava a luta contra o inverno implacável da alma e da natureza.
E, ainda hoje, a trajetória
de Martinho nos chama. Não apenas como santo ou cavaleiro, mas como lembrança
viva de que coragem e compaixão são inseparáveis. Ele cavalga por nossas
memórias, por nossas mesas de outono, pelo aroma do pão quente que nos convida
a continuar seu legado — a partilhar calor, a dividir vida, a transformar o
gesto mais simples em eternidade.
O MILAGRE DA CAPA: QUANDO A GENEROSIDADE
TRANSFORMOU O OUTONO NUM PEQUENO VERÃO
São Martinho de Tours,
cavaleiro de capa rubra, gesto generoso e olhar que atravessa séculos, ainda
cavalga pelas nossas imaginações como uma sombra calorosa contra o frio do
outono. A capa vermelha não era mero adorno — era o manto do soldado romano,
tecido espesso contra os ventos da campanha, estampado com o rigor da ordem
militar, o peso da disciplina e a luz dos estandartes. Martinho vestia esse
manto porque, como filho de um tribuno, foi alistado na cavalaria imperial aos
quinze anos, enviado a servir nas alas blindadas da Gália.
Ele chegava à estrada
próxima de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens, na França, antiga Gália)
montado no seu cavalo, a crina solta e os cascos ecoando sobre a pedra fria. A
névoa envolvia os portões da cidade como um véu pesado, e as folhas despencavam
em suspiros amarelos e ocre, anunciando o inverno que se aproximava com mãos de
gelo.
A presença do jovem
cavaleiro ali não parecia fora do lugar — a Gália romana estava pontilhada de
limitanei, tropas de fronteira que patrulhavam as estradas; estandartes e
símbolos da autoridade imperial, os signa militaria, ondulavam ao vento,
lembrando a todos da ordem do império; e as unidades montadas, os equites,
moviam-se com a disciplina silenciosa de quem garantia a paz e mantinha a
tessitura da vida urbana intacta.
Martinho, cavaleiro de capa
rubra, trajava o paludamentum, manto militar geralmente preso por um broche no
ombro, que balançava suavemente ao ritmo dos cascos do cavalo. O vermelho não
era apenas cor, mas símbolo: coragem, força e prontidão para o combate, um
sinal de distinção que destacava o oficial no campo de batalha. Ao mesmo tempo,
o tecido tinha uma função prática — disfarçava o sangue, lembrança silenciosa
da fragilidade da vida que se desenrolava entre guerras e fronteiras.
Ainda assim, Martinho se
movia com uma naturalidade rara: jovem cavaleiro, membro da cavalaria, detentor
de disciplina e autoridade, carregava no peito a semente da compaixão. Sob
aquele manto de poder, pulsava um coração capaz de aquecer o frio do outono e
estender calor humano mesmo aos que nada tinham. A capa vermelha, que marcava
sua posição no mundo, tornava-se ao mesmo tempo instrumento de bondade,
promessa silenciosa de misericórdia que iria atravessar séculos.
Martinho usava a capa não
por vaidade, mas por dever; nele estavam os símbolos da autoridade, da proteção
e da tradição militar. Aquele tecido vermelho era arma silenciosa contra o
frio, armadura contra o desespero, identidade que o império havia lhe conferido.
E, no entanto, dentro dele, no íntimo de seu coração, vibrava uma outra veste — a
da compaixão, a da partilha, a da fé emergente que recusava calar-se.
Preciso dizer que aprendi um
pouco de latim, não por vaidade, mas para ouvir os ecos das palavras antigas,
para compreender textos que atravessaram séculos, testemunhos de mundos que já
não existem. Na minha época de estudos mitológicos, cada frase em latim era uma
porta que se abria para os deuses, para os homens e para os gestos que moldaram
a história. E, pro conat disso, resolvi incluir estas palavras de Sulpicius
Severus não apenas como registro histórico, mas como encantamento: recitá-las é
tocar o passado, perceber o presente e, talvez, semear uma centelha que
alcançará o futuro. O gesto de Martinho, congelado na memória das palavras,
continua a aquecer corações, lembrando-nos da compaixão e da generosidade que
atravessam eras.
«Quodam itaque tempore, cum iam nihil praeter arma et simplicem militiae vestem haberet, media hieme, quae solito asperior inhorruerat, adeo ut plerosque vis algoris exstinxeret, obvium habet in porta Ambianensium civitatis pauperem nudum: qui cum praetereuntes ut sui misererentur oraret omnesque miserum praeterirent, intellexit vir Deo plenus sibi illum, aliis misericordiam non praestantibus, reservari. … Arrepto itaque ferro, quo accinctus erat, mediam dividit partemque eius pauperi tribuit, reliqua rursus induitur.» Fonte: SEVERUS, Sulpicius. Vita sancti Martini. In: HALM, Karl (ed.). Sulpicii Severi libri qui supersunt. Wien: CSEL 1, 1866.
“Num certo tempo, portanto, quando já não possuía nada além das armas e das vestes simples da milícia, no meio do inverno, que mais severo que o habitual se tornara, de modo que a força do frio extinguira a maioria, encontrou à porta da cidade dos Ambianos um pobre nu. E, quando os que passavam por ele não cessavam de rogar que se compadecessem dele e todos continuavam a passar adiante, aquele homem cheio de Deus compreendeu que aquele homem, por quem outros não demonstravam misericórdia, era guardado para si. … E então, tendo agarrado a espada com que estava cingido, dividiu ao meio aquela capa, e a parte dela concedeu ao pobre, e a outra voltou a vestir.”
Essas palavras em latim não
são meramente história: são um portal, uma introdução, um sussurro que
atravessa os séculos. Elas nos preparam para o instante que se desdobra à nossa
frente, para o gesto que Martinho realizou naquela manhã fria, à porta de Amiens.
O latim, com sua cadência
ancestral, carrega o peso e a solenidade do passado, como se cada termo
trouxesse consigo o sopro do vento gelado, o relincho do cavalo e o calor da
compaixão prestes a se revelar. Agora, adentro o coração da narrativa, aquele instante
que, ao longo dos séculos, continua a nos tocar e a aquecer nossas almas.
Numa manhã em que o vento
parecia arrancar da terra cada gota de calor, Martinho viu o mendigo: carne e
ossos, tremendo à porta de Amiens (na Gália), quase dissolvendo-se no ar
gelado. A cidade bloqueava-se na rotina e passava, mas Martinho parou. Desmontou,
a espada reluzindo um instante contra o céu encoberto. A lâmina cortou a capa
ao meio. Ele envolveu o pobre homem não apenas com lã, mas com dignidade e
ternura. Uma metade da capa compartilhada — um gesto que rasga o tecido e abre
o coração, dividindo calor, esperança e humanidade. A outra metade permaneceu
com Martinho, como lembrete de que a verdadeira generosidade não anula o
próprio ser, mas o expande, tornando o mundo inteiro um pouco mais quente.
Naquele instante, a capa
rubra deixou de ser símbolo de poder para se tornar sinal de misericórdia. O
frio recuou, o sol se fez presente e o outono hesitou. Martinho mostrou-nos que
nem todo cavaleiro monta por glória — alguns montam para ousar a ternura, para
resgatar o calor humano, para vestir o invisível.
E então, como se o universo
tivesse guardado seu olhar para esse gesto de bondade, algo extraordinário
aconteceu: a neblina recuou, os ventos cessaram, e a chuva deu lugar a um sol
tímido, dourado como um pássaro recém-desperto. As pedras, banhadas de orvalho,
brilharam como se reconhecessem a justiça do gesto. Por três dias, uma luz
suave dominou o outono, aquecendo a terra e o coração das pessoas — um fenômeno
que passou a ser lembrado como o “Verão de São Martinho”, breve e milagroso,
tão luminoso quanto a generosidade que o provocou.
Naquela noite, Martinho teve
um sonho — ou talvez estivesse desperto em um limiar entre o real e o sagrado.
Viu Cristo vestido com a metade da capa que havia dado ao pobre, e ouviu entre
os anjos: “Aqui está Martinho, ainda catecúmeno, que me vestiu com este manto.”
A partir desse instante, seu coração se incendiou. A indiferença desapareceu, e
surgiu uma vida inteira dedicada à caridade, ao acolhimento e à construção de
um reino feito não de espadas, mas de misericórdia.
O milagre da capa não foi
apenas o calor físico que aqueceu um homem ao frio; foi o acontecimento que
moldou uma alma, o instante em que Martinho se tornou farol para aqueles que
ainda buscariam consolo e compaixão em um mundo áspero. O gesto, simples e extraordinário,
continua a ecoar: cada capa dividida, cada pão compartilhado, cada mão
estendida ainda é um eco daquele cavaleiro de capa rubra, atravessando os
séculos com ternura e coragem.
Mas é preciso lembrar que a
Gália era então domínio dos deuses do império romano, um panteão herdado dos
gregos, fértil em figuras e rituais, politeísta e majestoso. Mesmo sob essa
ordem e disciplina, a terra ainda guardava os sussurros antigos dos druidas, o
perfume das florestas sagradas e o murmúrio dos rios que percorriam vales
secretos.
Nas aldeias rurais, entre
carvalhos venerados e círculos de pedra esquecidos pelo tempo, ecoavam os ritos
celtas: celebrações do sol, do fogo, da colheita, memórias de um mundo que
respeitava o ritmo da natureza e reverenciava cada mudança de estação.
Martinho cavalgava por essas
terras onde a autoridade do império e a disciplina militar se entrelaçavam com
a memória viva dos deuses romanos e dos ancestrais celtas, que sentiam o frio
do outono como prenúncio e o calor do sol como bênção. Foi nesse entrelaçar de
mundos — o concreto do império e o sagrado do bosque — que o milagre da capa
encontrou seu cenário perfeito, como se cada folha soprada pelo vento
carregasse consigo um convite silencioso à generosidade e à compaixão.
Antes de a espada de
Martinho riscar o céu da Gália e de a capa rubra se rasgar em bondade, o solo
em que ele cavalgava já carregava o eco antigo dos celtas — aqueles que
chamavam a terra de Gallia Celtica, onde as tribos percorriam florestas densas,
celebravam os ciclos do ano em ritos ao redor do fogo e sentiam os ventos
assoprarem não só entre as árvores, mas também no coração do mundo.
Assim, quando Martinho
apareceu em seu paludamentum vermelho, ele encontrou um solo que já conhecia o
ritual da partilha, o fogo que salvava e o manto que aquecia mais que o corpo —
aquecia a alma. E o milagre que ele protagonizou não rasgou apenas o tecido da
capa, mas lembrou àquela terra antiga que a compaixão se assemelha ao sol que
inesperadamente rompe a neblina de novembro, exatamente como nas antigas feiras
celtas em que a luz retornava entre as estações.
Curiosidades abundam, e a
figura de São Martinho se confunde com a memória viva dos deuses cavaleiros da
tradição celta, guardiões das colheitas e protetores da generosidade; pois,
embora na Gália romana não houvesse cavaleiros como os medievais, os deuses e
heróis celtas montavam simbolicamente sobre os corcéis da força, do poder e da
sabedoria, atravessando o mundo humano e o espiritual.
É preciso lembra: na
tradição celta, não existia exatamente o “cavaleiro” como no mundo romano ou
medieval, mas muitos deuses e heróis galopavam nas correntes invisíveis entre
os mundos, carregando em seus corcéis a energia da guerra simbólica, da fertilidade
e da transformação.
O cavalo, sagrado, era ponte
entre o visível e o invisível, entre o humano e o divino, entre o palpável e o
sussurro do vento nos bosques antigos, e aqueles que o montavam — homens ou
divindades — carregavam nas rédeas não apenas velocidade e coragem, mas a
própria energia da vida e da fertilidade.
O cavalo e seu cavaleiro eram mais que força e
velocidade; eram a encarnação do poder sagrado, da liberdade que atravessa
mundos, e da audácia que só a coragem guiada pelo coração desperta.
Entre essas divindades
celta, Epona, senhora dos cavalos, guardiã das viagens e da fecundidade,
move-se silenciosa, como sombra protetora sobre cada estrada e cada campo,
inspira a confiança silenciosa de quem parte e de quem retorna; Macha, deusa da
guerra e da soberania, corre veloz sobre os rios e planícies, lembrando que a
força da coragem pode rasgar o frio da indiferença, que a coragem é também a
arte de enfrentar o inevitável; Nuada Airgetlám, rei guerreiro da Tuatha Dé
Danann, empunha sua espada reluzente e cavalga entre céus e terras, oferecendo
autoridade e justiça àqueles que ousam enfrentar o destino.
Epona e seus cavalos, de Köngen, Alemanha, cerca de 200 a.C.
o deus Nuada Airgetlám tinha um braço de prata, e seu epíteto "Airgetlám" significa "braço de prata"
E assim, depois de
galoparmos pelos bosques e rios sagrados da tradição celta, onde deuses e
heróis cavalgam entre mundos invisíveis, a paisagem se abre para outra presença
antiga e poderosa: a Gália de Martinho não era apenas terra de druidas e
florestas encantadas, mas também chão onde o politeísmo greco-romano reinava
lado a lado com os cultos celtas.
Ali, deuses que conhecemos
de épicos e templos, cavalos sagrados e heróis divinos cruzavam simbolicamente
com os corcéis e cavaleiros humanos, mostrando que o mesmo sopro de sacralidade
podia habitar o mundo visível e invisível, do bosque à planície romana, da
aldeia celta ao templo de mármore. É nesse encontro de mitologias, nesse
entrelaçar de tradições e poderes, que se abre o caminho para os corcéis de
Poseidon, o Hippios, e a memória dos deuses que carregam força e mistério sobre
suas crinas.
Na tradição greco-romana, os
cavalos também eram guardiões sagrados, animais que carregavam deuses sobre
suas crinas, transportando poder, força e mistério. Poseidon, em sua forma mais
profunda e ancestral, era chamado Ἵππιος – Hippios, o “Senhor dos Cavalos”, e
em cada relincho sentia-se o eco das ondas do mar, da terra tremendo e das
tempestades que só ele podia dominar. Os corcéis eram sua extensão, velozes
como ventos, fortes como rochedos, e os cavalos sagrados tornavam-se pontes
entre o humano e o divino, ligando campos e mares, guerreiros e deuses.
Quando Roma absorveu os
deuses gregos, Poseidon se fez Netuno, e embora seu vínculo com os mares
permanecesse mais central, a sacralidade dos cavalos não desapareceu; eles
continuavam a carregar a autoridade e a força do deus, como símbolos
silenciosos de disciplina, fertilidade e movimento entre mundos visíveis e
invisíveis.
Ao mesmo tempo, há vínculos
que ligam a deusa da agricultura com a relação com os cavalos e ao surgimento
das estações: Ceres, como os romanos a
chamavam, era a terra generosa e os grãos da colheita, mas também o silêncio e
a sombra da ausência. Quando sua filha, Perséfone, conhecida em Roma como
Proserpina, foi raptada por Hades e levada para o reino das sombras, Ceres
iniciou uma busca incansável, vasculhando cada canto do mundo, cada bosque e
cada rio, em desespero que fazia a terra murchar e o céu tremer. Nem mesmo a
deusa Hécate, guardiã das encruzilhadas e da magia, nem Hélio, que tudo via do
alto do sol, puderam conter sua dor, embora lhe mostrassem o paradeiro da
filha; a ausência de Proserpina congelava a terra, e a fome e o inverno se
abatiam sobre os campos.
Durante essa busca, a deusa
encontrou-se perseguida por Poseidon Hippios, seu irmão e Senhor dos Cavalos,
que a desejava. Para escapar de sua insistência, Ceres transformou-se em égua,
galopando entre os cavalos de Oncius, buscando refúgio na Arcádia. Poseidon,
porém, assumiu a forma de um garanhão e, rompendo sua fuga, a violou. Dessa
união nasceu Arion, o corcel imortal, espírito veloz que encarnava a união
entre cavalos e divindades, tornando-se ponte viva entre o céu e a terra, entre
o humano e o divino, entre a semente enterrada e o pão que brota nas mãos do
homem.
Marcada pela ira e pelo
luto, Ceres assumiu a forma de Deméter Erinys, a Furiosa, e de Deméter Melaina,
a Negra, vestida de sombras, recusando-se a comer, beber ou interagir com o
mundo, enquanto os campos secavam e a vida parecia suspensa. Quando finalmente
se purificou no rio Ladon, recebeu também o epíteto de Deméter Lusia, a
Purificadora, mostrando que até na dor e na humilhação há renovação e ritual, e
que cada estação, cada seca e cada abundância são parte de um ciclo sagrado que
atravessa tempo, memória e alimento.
O mito, espalhado entre
Phigalia e Thelpusa na Arcádia, entre Tilphusa na Beócia e outros santuários,
celebra não apenas a fertilidade da terra, mas também a força das águas, do
cavalo e da divindade, e a dança eterna entre dor e esperança, entre perda e
regeneração. Arion, nascido da fúria e da fuga, é testemunho de que a vida
pulsa mesmo através da violência e da sombra, lembrando que cada gesto, cada
grão, cada pão partilhado carrega consigo a memória dos deuses e a coragem de
quem os serve.
Foi da angústia de Ceres, da
busca incansável por sua filha Proserpina, que o ritmo das estações se fez
visível aos homens. Enquanto a deusa percorria os campos secos e os bosques
silenciosos, a terra murchava, os rios diminuíam e o pão desaparecia das mesas;
o inverno se alongava como sombra persistente sobre o mundo. Cada passo de
Ceres era uma nota no lamento da natureza, cada vestígio de sua dor, uma marca
de aridez e ausência. Somente quando Zeus, movido pelo equilíbrio entre deuses
e mortais, interveio, ordenando que Proserpina passasse parte do ano com a mãe
e parte com Hades, a vida voltou a fluir: as sementes germinaram, os ramos se
ergueram e a fertilidade regressou aos campos. Assim, a alternância de presença
e ausência da deusa, de calor e frio, de seca e abundância, transformou-se no
ciclo sagrado das estações — memória viva de que a perda e a reunião, a dor e a
alegria, são fios invisíveis que tecem o tempo, conectando o divino ao humano,
a mãe à filha, o campo ao pão, e lembrando que cada estação, cada colheita e
cada fome, nasce da dança eterna entre amor, saudade e generosidade.
Com a vida das estações,
veio o ciclo dos grãos, que voltaram a oferecer alimento ao mundo, como se a
simples felicidade da mãe por ter sua filha de volta — ainda que por apenas
seis meses do ano — pudesse restaurar a terra inteira. Assim, nos mitos, nos
corcéis e cavaleiros sagrados, cada cavalo, cada rédea segurada por mortal ou
divindade, era mais que transporte: era linguagem do sagrado, pulsação entre
céu e terra, lembrete de que coragem, poder e liberdade caminham sempre juntos,
entrelaçados.
Cada um deles galopa na
memória da terra e no sopro dos ventos de outono, revelando que coragem e
compaixão podem se unir, que generosidade é poder que se oferece, e que até o
mais simples gesto — como compartilhar o calor de uma capa vermelha — ecoa com
a força de um milênio, conectando cavaleiros, deuses e homens numa dança eterna
entre sombra e luz, lembrando-nos que cada passo, cada relincho, cada estação,
é parte de um pacto invisível que atravessa o tempo e a memória.
É nesse imaginário que
Martinho se insere: romano e cavaleiro, jovem militar, mas com o coração já
incendiado por uma compaixão que transcende ordens e insígnias. Cada passo de
seu cavalo sobre a terra galesa ou galorromana ressoa como eco antigo do sagrado,
do bosque e da chama que nunca se apaga, lembrança viva de que o humano e o
divino se entrelaçam sempre que a generosidade se manifesta, e que coragem,
poder e bondade caminham juntos, entre relinchos, vento e memória.
E assim, da memória dos
cavalos sagrados, das estações que surgem e se recolhem, e do gesto generoso de
um homem que se tornou lenda, ergue-se a ponte para o mundo visível: a
compaixão concreta, que se manifesta em calor, alimento e cuidado. Martinho, cavaleiro
antigo e símbolo de generosidade, ainda carrega consigo a aura de divindades
ancestrais, um resíduo do sagrado que o cristianismo, de alguma forma, jamais
conseguiu apagar por completo. O frio do outono, as folhas que caem e o vento
que anuncia mudança tornam-se testemunhas desse encontro entre mito e
cotidiano, lembrando que a dádiva e a bondade não se limitam à memória:
prolongam-se no toque das mãos, no calor compartilhado, no alimento que nutre
mais que o corpo — nutre a alma.
E é desse mesmo fio que liga
cavalos sagrados, deuses, estações e gestos humanos que, séculos depois, nasce
um símbolo concreto de generosidade: o pão de São Martinho. Como o gesto do
cavaleiro que estende sua capa ao pobre, o pão surge como lembrança palpável da
compaixão que atravessa tempo e memória, traduzindo o calor do coração em
alimento compartilhado. Não é coincidência que, em regiões onde as tradições
celtas, romanas e cristãs se entrelaçaram, esse pão se transforme em ritual:
ele carrega o eco das estações que Deméter/Ceres rege, o sopro do outono que
anuncia mudança, e a lembrança de que a bondade, quando se torna gesto,
atravessa eras, une mundos e continua a pulsar na mesa de quem se dispõe a
partilhar.
O PÃO DE SÃO MARTINHO: UM RITUAL DE
OUTONO NA ÚMBRIA
Nas tradições populares,
sobretudo nas derivações celtas e rurais, o gesto de Martinho converteu-se em
rito e símbolo: o cavaleiro generoso que enfrenta o frio, a mudança repentina
do clima como resposta ao ato humano, o pão que nasce da partilha, a capa que
aquece e se transforma em memória. Martinho, assim, passa a ser mais do que
homem: torna-se ponte entre as estações, entre sombra e luz, entre o frio que
comprime e o fogo que liberta.
Cada pão assado em seu nome,
cada mesa de novembro, carrega essa aura — o desejo de que o calor não seja
apenas físico, mas também espiritual, que o alimento seja gesto, o pão seja
promessa, a capa seja símbolo. Mas por que pão? Por que o gesto de Martinho,
dividido entre ele e o pobre, se transforma em massa para o forno?
Porque o pão, alimento
ancestral e universal, é a metáfora perfeita do que o santo nos ensinou:
partilhar, dar calor, oferecer sustento e conforto. No tempo das aldeias
medievais, o pão era riqueza, segurança, vida. Preparar pão em sua homenagem é
refazer aquele gesto: transformar ingredientes simples em sustento
compartilhado, como Martinho transformou sua capa em calor, e a indiferença em
humanidade.
Assar pão para São Martinho
é, então, muito mais do que tradição: é ritual. Cada mistura de farinha, água e
fermento carrega a intenção de generosidade. Cada dobra da massa, cada
pincelada de ovo na crosta, é metáfora da capa aberta, do calor estendido. O
aroma que se espalha pela cozinha, invadindo a casa, é quase um feitiço de
outono — lembrança do “verão de São Martinho”, quando o sol surge após a
tempestade, aquecendo a terra e os corações. Nesse gesto simples, sentimos o
toque do passado: a mão generosa do cavaleiro ainda percorre nossas mesas,
aquece nossas mãos, nos lembra que cada ato de partilha cria calor que vai
muito além do corpo.
Cada pão assado em sua
homenagem carrega essa memória como um pequeno milagre cotidiano. A massa
leveda com paciência, cresce lentamente, dourando na crosta macia que guarda
calor e histórias. Ao partir a primeira fatia, sentimos algo além do sabor: o
encontro de eras, a mão generosa do cavaleiro que ainda nos toca, o sopro do
passado que se mistura com o presente — o outono do Norte e as tempestades do
Sul parecem convergir no aroma que se espalha pela cozinha.
O pão, nesse contexto,
torna-se metáfora viva: promessa e lembrança de que até nos dias mais
cinzentos, um gesto de calor pode transformar a vida de alguém. O cavaleiro
antigo, a capa vermelha, o pão compartilhado e o fogo do bosque — todos
entrelaçam passado e presente, Romano e Celta, humano e divino. Ainda hoje, na
crosta dourada e perfumada de um pão recém-saído do forno ou no vento que sopra
folhas pelo outono, sentimos o sopro daquela manhã em Amiens, quando Martinho
ensinou que coragem e compaixão não são inimigas, mas irmãs, que montam juntas
pelo mundo, atravessando séculos e corações, como eco daquilo que foi e do que
ainda pode ser.
Assim, entre brumas suaves e
folhas que caem, quando o frio se insinua nas cidades do Norte Global ou as
tempestades surpreendem o Sul Global, a tradição da Úmbria nos recorda que a
memória não se conserva apenas em textos ou lendas, mas também em sabores e
gestos, e que cada pão compartilhado renova o calor da generosidade, conectando
o passado e o presente em um ritual vivo.
É neste cenário que o Pão de São Martinho,
conhecido como Pan Nociato ou Pan Caciato, se revela — um pão que não é apenas
alimento, mas ritual, símbolo e memória viva.
A história escrita deste pão
remonta a um antigo livro da culinária popular de Fabriano (AA. VV.; Angelini,
P.; Balilla Beltrame, A.C.; Lipparoni, N.; Picchi, G.; Trecciola, A. Antologia
della cucina popolare. Fabriano: Comunità Montana dell’Esino-Frasassi, 1993,
reeditado em 1993, p.44), que preserva receitas tradicionais com variantes
doces e salgadas, algumas já preparadas nas regiões de Sassoferrato e Matelica.
No entanto, na Úmbria, o pão toma uma forma própria: um pequeno pão rústico,
aromático, recheado de nozes recém-colhidas, coberto com queijo pecorino e
perfumado com pimenta preta (pimenta do reino), às vezes enriquecido com passas
ou um toque de vinho, que o torna simultaneamente simples e complexo, humilde e
generoso — exatamente como o cavaleiro Martinho de Tours que lhe empresta o
nome.
Este pão nasce como
celebração da época da colheita, do outono pleno, do chamado “Verão de São
Martinho” — aqueles dias inesperadamente amenos ao redor de 11 de novembro,
quando, segundo a lenda, após São Martinho dividir sua capa com um mendigo
congelado, o céu se abriu e o sol devolveu calor aos ossos e à alma. A Úmbria,
com suas vilas de Assis, Perugia, Todi e San Martino in Campo, preserva esta
tradição não apenas em mesas familiares, mas também em pequenos santuários
culinários, como a Santino Panetteria, onde cada pão é moldado com reverência e
atenção aos detalhes.
Cada ingrediente do Pan
Nociato tem sua história. As nozes, frutos da terra recém-colhida, representam
a generosidade da estação; o pecorino, sólido e pungente, dá força e sabor,
lembrando que a bondade exige substância; a pimenta, sutil e inesperada, desperta
os sentidos, tal como o gesto de Martinho desperta corações adormecidos. Moldar
a massa é um ato de contemplação; esperar que cresça, sentir o aroma se
espalhando pela cozinha, é uma meditação sobre o tempo, a paciência e a ligação
entre passado e presente. Cada pão que sai do forno é ao mesmo tempo ritual e
alquimia: a transformação do simples em extraordinário, do pão em símbolo, da
massa em memória viva.
Historicamente, este pão não
existe apenas na cozinha: ele permeia a cultura local, figurando até em poesias
e tradições populares.
Guido Discepoli, poeta
umbriense, evoca em seus versos o Pan Nociato como parte da celebração de
novembro, inserindo-o no ciclo de memórias e climas peculiares da estação.
Assim, o pão se torna ponte entre eras: a lenda do legionário romano que se
converteu em bispo e padroeiro dos viajantes e viticultores, e o viajante
moderno que, ao partir a primeira fatia, sente calor humano e memória ancestral
se fundirem no instante presente.
Antes disso, o Anuário da
cidade de Todi, datado de 1927, registra o ritual de preparo do “pan pepato”,
um pão enriquecido com nozes e, às vezes, com uvas passas, consumido
tradicionalmente durante o outono, especialmente pelos trabalhadores nos
campos. Um pão que carregava em si o esforço e a energia da colheita, mas
também o aconchego das memórias de família e comunidade.
A receita, conforme descrita
no anuário, diz: “Pegue um punhado de nozes picadas, um punhado de uvas passas,
um punhado de queijo pecorino em cubos pequenos, uma pitada do mesmo queijo
ralado, uma pitada de pimenta, um pouco de sal, cinco ou seis cravos-da-índia,
meio copo de vinho tinto, banha e azeite de oliva a gosto, e misture tudo,
deixando a massa descansar por cerca de dez horas. Em seguida, junte um quilo e
meio de massa de pão, formando uma mistura que deve ser dividida em três
partes, como pães separados. Em cada pão, faça um corte profundo em forma de
cruz. Quando a massa estiver fermentada, asse em forno de tijolos.”
Este pão, rico em sabor e
energia, era o companheiro fiel dos dias de trabalho nos olivais de novembro,
sustentando homens e mulheres durante a colheita. Seu tamanho modesto permitia
ser saboreado sem pesar, um pequeno sustento que aquecia corpo e espírito.
Embora existam variações doces e salgadas, a receita de Todi permanece
clássica: a maciez da banha contrasta com o agridoce das uvas passas e o sal do
queijo pecorino, criando uma experiência que atravessa séculos.
De fato, preparações
semelhantes já eram conhecidas no mundo clássico: o patriarca Sofrônio, no
século VI, mencionava um pão de queijo para crianças, enquanto em Roma antiga
existiam múltiplas variantes de pães enriquecidos, que evoluíram ao longo do
tempo até chegar à tradição atual.
O “pan nociato”, também
chamado “pan caciato”, tornou-se assim uma verdadeira iguaria, preservando-se
nas mesas da Úmbria e difundindo-se de Todi para toda a região. Sua importância
cultural e afetiva é tal que mereceu lugar de destaque no poema Novembro de
Guido Discepoli, incluído na obra Coletânea de poemas e canções populares
religiosas de algumas cidades da Úmbria, editada por Oreste Grifoni – hoje,
infelizmente, fora de catálogo. Um pão que é, ao mesmo tempo, sustento, memória
e celebração da estação.
No ápice desta experiência,
quando o pão se revela dourado, crocante por fora e macio por dentro,
percebemos que cada fatia oferecida é um ato de partilha e compaixão. Não é o
pão sozinho que importa, mas o gesto: dividir é transcender, como Martinho transcendeu
o seu tempo com um simples corte de capa. É um momento em que o sagrado
encontra o cotidiano, a lenda se mistura ao aroma do forno, e o outono, com sua
luz dourada e dias instáveis, se torna palco para pequenos milagres comestíveis
— e eternos.
O GRAN FINALE: O PÃO, A
CAPA E O SOL DE SÃO MARTINHO
E, assim, quando o Pão de
São Martinho emerge do forno, dourado, aromático, pleno de calor e memória,
sentimos algo que transcende o paladar: uma ponte entre séculos, entre mãos que
moldaram massa e mãos que cortaram capas, entre as neblinas frias do Norte e o
sol fugaz que aqueceu a Úmbria. Cada pedaço partilhado carrega o gesto antigo
do cavaleiro de capa rubra — generosidade que se torna alimento, coragem que se
torna conforto. O aroma se espalha, quase sagrado, como se cada grão de
farinha, cada noz triturada, cada fio de queijo pecorino contivesse a própria
alma do santo e o sopro das estações.
Martinho, o legionário que
abandonou a espada pelo abraço da misericórdia, cavalga invisível ainda, seus
passos ecoando entre vilas e colinas, entre igrejas silenciosas e cozinhas
cheias de risos e calor. O pão, com sua crosta macia e interior cheio de vida,
é a tradução comestível de um milagre que se repete: a luz inesperada de um sol
de outono, o calor que nasce do coração humano, o instante em que o gesto mais
simples se torna eterno. É a Úmbria inteira, sua terra generosa, seu outono
dourado, suas histórias guardadas em afrescos e mesas, que nos envolve — um
abraço invisível que atravessa os séculos.
E, então, ao oferecer a
primeira fatia, sentimos a plenitude: não há mais passado nem presente, apenas
o instante sagrado da partilha, a alquimia da generosidade e do alimento. O Pão
de São Martinho é mais que pão, mais que tradição: é poema, é história, é magia
palpável, e cada mordida nos lembra que a vida, como o outono, é feita de
contrastes — do frio e do calor, da sombra e da luz, da fome e da doçura. E
nesse instante, sob o sol que rompeu a neblina, entendemos que o milagre não
está apenas no gesto do santo, mas em cada coração que escolhe aquecer outro
coração, em cada mesa onde o pão se torna promessa, em cada lembrança que se
torna eterno.
O pão termina, mas o encanto
permanece. Como Martinho, atravessamos o tempo com coragem, partilhamos calor,
e descobrimos que o outono, a Úmbria, e até mesmo nossas cozinhas, podem ser
templos de compaixão, poesia e magia. E assim, ao fechar os olhos e respirar
profundamente o aroma do pão, sentimos: o mundo inteiro se ilumina com o gesto
mais simples, e a história, a lenda e o sabor se tornam um só — perfeito,
apoteótico, infinito.
E então o pão repousa,
dourado e perfumado, mas a magia não termina. Como Martinho, seguimos viajando
pelo tempo, dividindo não apenas calor, mas vida, histórias e memórias. Cada
fatia é um gesto de generosidade, cada aroma que se espalha pela cozinha é um
sussurro do passado que se curva ao presente. No fulgor do forno, no estalar da
crosta, no toque macio da massa, sentimos a Úmbria inteira — suas colinas, suas
vinhas, suas igrejas silenciosas e suas aldeias escondidas — pulsando em
harmonia com o outono do Norte e os ventos tempestuosos do Sul.
O gesto do cavaleiro, a capa
compartilhada, o milagre do sol de novembro, a paciência da massa levedando:
tudo se funde em um instante sagrado, quase místico. O pão de São Martinho
deixa de ser alimento e se torna oração, poema, pintura viva — um altar efêmero
de calor humano. Respiramos profundamente, e no perfume de nozes, queijo e
especiarias, o mundo inteiro se ilumina com a simplicidade de um ato de amor.
Assim, ao partir a última fatia, sabemos: não é o pão que termina, mas o encantamento que permanece, eterno e silencioso. Cada mesa, cada lar que acolhe esta tradição, se transforma em templo — onde a história, a lenda e a vida se entrelaçam, e onde o simples gesto de partilhar se eleva ao sublime. O Pão de São Martinho não é apenas receita: é memória, é luz, é eternidade em forma de alimento, e é, sobretudo, a promessa de que o calor da bondade humana pode atravessar séculos, atravessar ventos frios, atravessar vidas.
PÃO CACIATO DI SAN MARTINO (versão
salgada)
500 g de farinha de trigo
20 g de fermento biológico fresco (ou
use 1 pacotinho de fermento pra pão seco, 13g)
220 ml de água morna
10 g de sal fino
25 g de azeite de oliva
250 g de passas
100 g de nozes picadas
250 g de queijo pecorino cortado em
cubos
1/4 de colher de chá de pimenta-do-reino
moída
Modo de preparo: Deixe as passas de molho em água morna
por 10–15 minutos. Escorra e seque-as. Pique o queijo pecorino em cubos e as
nozes. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Peneire a farinha na
batedeira, adicione o sal e a pimenta, e uma parte do fermento dissolvido.
Ligue a batedeira e adicione o restante do fermento, depois a água restante e o
azeite. Se a massa parecer seca, adicione um pouco mais de água. Transfira a
massa para uma superfície enfarinhada, sove um pouco, abra e incorpore as
passas, nozes e queijo pecorino no centro, misturando bem. Modele a massa em
bola e deixe crescer por 15 minutos coberta com pano. Divida a massa em 9
porções, modele em bolas, disponha 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas
cada. Deixe crescer 45–60 minutos. Pré-aqueça o forno a 180°C (com ventilador),
coloque os pães e asse 5 minutos a 180°C, depois reduza para 160°C e asse mais
35–40 minutos até dourar. Retire do forno e deixe esfriar antes de servir.
Observação: A adição de pimenta-do-reino dá apenas
um leve toque aromático que realça o sabor do queijo e das nozes sem sobrepujar
os demais ingredientes.
Pan Nociato (doce)
500 g de farinha de trigo
20 g de fermento biológico fresco (ou 1
pacotinho, 13 g, seco)
220 ml de água morna
10 g de sal fino
25 g de azeite de oliva
300 g de passas (mais doces, podem ser
sultanas)
150 g de nozes picadas
100 g de açúcar mascavo ou cristal
1/2 colher de chá de canela em pó
1/4 colher de chá de pimenta-do-reino
(opcional, apenas para aroma)
Raspas de 1 limão (opcional, para aroma
fresco)
Modo de preparo: Deixe as passas de molho 10–15 min em
água morna, escorra e seque. Pique as nozes e reserve. Misture o açúcar, a
canela e as raspas de limão. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Na
batedeira, peneire a farinha, adicione o sal, a pimenta (se usar) e parte do
fermento dissolvido. Ligue a batedeira, adicione o restante do fermento, a água
e o azeite. Ajuste a consistência com um pouco mais de água, se necessário.
Transfira para superfície enfarinhada, sove levemente e abra a massa. Incorpore
passas, nozes e a mistura de açúcar/canela/raspas de limão. Modele em bola,
cubra e deixe crescer 15 minutos. Divida em 9 porções, modele em bolas,
organize 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas cada. Cresça 45–60 min.
Pré-aqueça o forno a 180 °C (ventilado). Asse 5 min a 180 °C, depois reduza
para 160 °C e asse 35–40 min até dourar.


















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