Há algo de mais antigo que o
tempo nas quitandas brasileiras. Algo que escapa às horas e se deposita nos
poros da madeira da mesa de cozinha, no pano puído do avental, no cheiro que se
insinua pelas frestas da porta: forno aceso, milho ou mandioca ralada, açúcar
se rendendo ao fogo, o café gemendo no coador de pano. Não são apenas bolos,
roscas e biscoitos— são relicários de memória coletiva. Não são só quitandas —
são catedrais do cotidiano, onde o sagrado era servido em prato de ágata.
Foi entre quintais de terra
batida e becos de calçamento incerto que surgiram, como flores teimosas, as
quitandeiras. Suas mãos — firmes como rochas, ternas como chuva mansa — sabiam
do poder da repetição. Sabiam que bater um bolo era invocar a avó, a mãe, a
tia. Sabiam que oferecer um biscoito era doar um pedaço da alma.
Desde os dias sombrios do
Brasil Colônia até o brilho inquieto do Brasil Imperial, era pelas mãos de
tantas mulheres — negras em sua maioria, mas também indígenas, mestiças,
brancas pobres e viúvas lançadas à própria sorte — que o país aprendia a se
alimentar de si mesmo.
Elas surgiam ao amanhecer
como sacerdotisas do cotidiano, carregando nos braços tabuleiros que eram ao
mesmo tempo sustento e altar. E, nas frestas abertas pela violência e pelo
silêncio imposto, erguiam seus pequenos reinos de cheiro e doçura: broas douradas,
cocadas que cintilavam como luas breves, bolos cuja maciez parecia guardar
segredos, beijus que traziam a memória mais antiga da terra.
Cada venda era um gesto de
insurgência.
Cada receita, um fragmento
de ancestralidade.
Cada sabor, a escrita
clandestina de uma história que não coube nos livros. Assim, caminhando entre
becos, largos e mercados, essas mulheres — múltiplas em origem, porém unidas
pela mesma coragem — bordaram, com açúcar, fogo e fé, a primeira narrativa alimentar
do Brasil: uma história feita de resistência, ternura e sobrevivência, que até
hoje perfuma a memória do país como um perfume antigo que insiste em permanecer
na pele.
Eram sacerdotisas de um
culto sem templo, mas cheio de fé. Dentre elas, surgiam as quitandeiras de
Congonhas, Ouro Preto, São João del-Rei, Sobral, Salvador, Rio de Janeiro —
verdadeiras artífices do gosto, cujos saberes não vinham dos livros, mas do cheiro,
do tempo da massa, do ouvido atento à bolha que se forma na panela. Seus
saberes não moravam nos olhos, mas nos dedos. E o que faziam era mais que
vender comida: perpetuavam a existência por meio da doçura.
E ali, nesses tabuleiros que
tremiam levemente com o peso do dia, havia algo que beirava o sagrado. Cada
broinha de milho era um sol domesticado; cada cocada, uma lua branca arrancada
da noite; cada beiju, uma lembrança das primeiras mãos indígenas que moldaram o
alimento da terra. Naquelas superfícies de madeira gasta repousava um altar que
atravessava séculos, heranças e cicatrizes.
As quitandeiras caminhavam
entre ladeiras, becos e largos como quem percorre um destino antigo. Havia em
suas posturas uma espécie de nobreza rebelde — a dignidade que nasce não da
ausência de dor, mas da ousadia de continuar apesar dela. O perfume que deixavam
atrás de si era mais que cheiro de açúcar queimando, de massa assada, de coco
recém-ralado: era uma declaração silenciosa de permanência.
Não anunciavam sua força em
voz alta. Elas a sussurravam.
No rumor da panela.
No vapor que sobe.
No gesto exato de virar a
massa antes que o mundo desabe.
E assim, dia após dia,
teciam uma liturgia de sabores que desafiava o esquecimento. Alimentavam
cidades inteiras e, sem pretender, nutriam também a memória do país — uma
memória doce, firme e persistente, capaz de atravessar o tempo como uma braçada
de luz atravessa a água escura.
Pois cada quitute que
ofereciam era, no fundo, uma pequena redenção.
Uma promessa de que a vida
continua.
Uma bênção servida em papel
pardo.
E ao entregar um bolo, uma
cocada, um pedaço de céu feito de farinha e fogo, elas devolviam ao mundo algo
que o mundo tantas vezes lhes negara: a liberdade de criar beleza.
Com o século XX, o cenário
muda: a escravidão fora abolida, mas não o preconceito. A informalidade
persiste, agora nos quintais das casas, com fogões de lenha acesos ao amanhecer
e tabuleiros à venda nas janelas e nas bancas colocadas na calçada, na rua. As
quitandeiras, agora chamadas “tradicionais”, seguem ali, obstinadas, firmes,
transformando ingredientes humildes — o leite, o polvilho, o fubá, a mandioca,
o milho, o coco, as frutas locais — em oferendas de resistência.
Eram como guardiãs de um
fogo que não podia se apagar. Nos quintais onde galinhas ciscavam o silêncio e
o cheiro de lenha queimando se misturava ao da terra molhada, essas mulheres
reinventavam diariamente a própria sobrevivência. O mundo mudara, sim — mas a
mesa delas continuava sendo o primeiro altar de muitas manhãs brasileiras.
Cada iguaria que nascia de
suas mãos carregava o peso de ancestralidades que o tempo tentara dispersar. O
pão de queijo, inflado de ar e memória; o bolo de fubá que tremeluzia dourado
como promessa de sol; os sequilhos que se desfaziam entre os dentes com a mesma
delicadeza com que um segredo se dissolve no ouvido de quem sabe ouvir. Nada
ali era apenas alimento. Havia neles a persistência daquilo que insiste em
existir mesmo quando não há lugar para existir.
E se, antes, o tabuleiro
lhes servira como arma silenciosa contra o apagamento, agora era também
testemunha da persistência. Um tabuleiro numa janela, outro apoiado num caixote
na calçada, outro equilibrado sobre um pano bordado — cada um desses pequenos
altares dizia: aqui ainda pulsa o que tentaram calar.
As quitandeiras caminhavam
entre a tradição e o cotidiano com uma espécie de gravidade suave — a gravidade
de quem carrega histórias, de quem dosa o açúcar e a coragem na mesma medida.
Não buscavam glória; buscavam apenas continuar. E, nesse continuar, moldavam o
gosto de um país inteiro.
Porque resistir, para elas,
nunca foi um grito.
Foi um gesto.
Foi um aroma.
Foi o estalo da lenha
ardendo ao romper da manhã.
E assim, no século que
prometia modernidade, elas mantiveram viva a mais antiga verdade da cozinha:
que transformar o simples em extraordinário é, em si, uma forma de liberdade.
Entre elas, uma quitandeira
que virou célebre, Cora Coralina — não apenas poetisa tardia, mas doceira desde
sempre, alquimista de tachos e colher de pau. Muito antes que o Brasil a lesse,
o povo já a provava, em compotas de figo, doces de abóbora com coco e bolos que
perfumavam o ar ao redor da Casa da Ponte.
Era procurada como se
procura uma santa — mas não para bênçãos, e sim para quitutes e quitandas — e
ali, de portas entreabertas e mãos adoçadas de calda quente, Cora fazia o que
tantas outras quitandeiras fizeram por séculos: alimentava corpos, adoçava almas
e guardava silêncios.
Sua poesia nasceu depois,
muito depois — quando já não partilhava a casa com aquele homem severo, vinte e
tantos anos mais velho, cuja presença pesava como porta fechada.
Se juntara com o tal
Cantídio Tolentino de Mesquita que, trouxe consigo não apenas os filhos de
outra vida, mas também os fantasmas de problemas com a lei que o perseguiam
como um eco constante. Não houve casamento oficial, apenas uma convivência
marcada por impedimentos legais e pelo estigma cruel que a época impunha às
mulheres que ousavam amar fora das convenções.
E Cora, tão jovem, suportou
esse peso sozinha: o olhar torto da cidade, o julgamento serrado das vizinhas,
a violência silenciosa de uma vida construída sobre a corda bamba da
precariedade. Ainda assim, foi nessa atmosfera áspera e clandestina que ela continuou
acendendo fogões, criando filhos, moldando doces — e guardando dentro do peito
uma voz que só muito mais tarde encontraria liberdade para nascer.
Esse homem lhe tolheu os
sonhos, abafou conversas, diminuiu gestos, instalou silêncios que doíam mais
que gritos. Era um companheiro de sombras: duro, desconfiado, incapaz de
ternura, trazendo consigo o peso das próprias culpas e das próprias falhas perante
a lei, que recaíam sobre ela como um fardo que nunca lhe pertenceu.
Durante décadas, Cora viveu
entre as paredes estreitas de uma vida comandada por ele — cuidando de filhos e
enteados, sustentando a casa com seu trabalho, suportando a pobreza e as
línguas afiadas de uma sociedade que a julgava, mas nunca a enxergava. Sua voz,
naquele tempo, não encontrava espaço. O que existia era a panela — sempre ela
—, a colher de pau que girava no tacho como quem guarda uma chama secreta.
E talvez tenha sido por isso
que sua poesia demorou a nascer: porque antes precisou sobreviver ao
apagamento.
Precisou resistir ao marido
que a queria pequena, dócil, muda.
Precisou cultivar dentro de
si uma palavra que ele não podia ouvir, mas que ela jamais deixou morrer.
Foi só depois de sua morte,
quando enfim se viu livre da atmosfera pesada que durante tantos anos lhe
roubou o ar, que sua escrita floresceu — tardia como uma flor de inverno, sim,
mas tão forte que rasgou o tempo.
Porque mesmo que ele lhe
calasse a voz, Cora nunca deixou de acender o fogo — e foi desse fogo que
surgiram seus versos.
E talvez tenha sido
justamente ali, nos longos anos em que suas palavras ficaram confinadas ao
coração, que sua escrita fermentou — como massa que cresce no escuro, paciente,
esperando o momento exato de se revelar. A cozinha foi seu refúgio, sua oficina
de encantamentos, onde cada fruta pedaçuda, cada calda âmbar, cada panela
pesada lhe oferecia uma liberdade que o mundo ainda lhe negava.
Enquanto a vida a tratava
com aspereza, Cora devolvia ao mundo um universo de doçuras.
Era no tacho de cobre que
ela deixava repousar aquilo que não podia confidenciar a ninguém. Era sua
confidente.
A colher de pau, sua
cúmplice.
O fogo, seu grande
revelador.
Em cada doce que fazia,
havia uma pequena desobediência — uma afirmação de que algo nela sobreviveria
intacto, apesar das sombras domésticas, apesar das restrições, apesar do
silêncio imposto. Ao redor dela, a cidade de Goiás se perfumava com um misticismo
culinário, como se cada tijolinho colonial estivesse impregnado de açúcar,
calda e resistência.
Quando, enfim, seus versos
vieram à luz, o Brasil descobriu que aquela doceira de avental manchado de
melado era também uma poeta de alma incendiada — mas, no fundo, nada disso
surpreendia seus vizinhos. Eles já sabiam que havia grandeza naquelas mãos que
mexiam a panela. Sabiam que seus doces eram mais que doces: eram confidências,
eram memórias eternizadas, eram traduções comestíveis de uma vida inteira
guardada em cadernos invisíveis.
Sua poesia — que chegou
tardia, sim, mas chegou inteira — não nasceu dos livros.
Nasceu dos tachos.
Nasceu do vapor que sobe
quando o açúcar encontra o fogo.
Nasceu do gesto feminino e
ancestral de transformar dor em doçura, e doçura em permanência.
Porque antes de ser lida,
Cora foi saboreada. Antes de ser a poeta que o mundo reverencia, foi a
quitandeira, e o povo já encontrava nela um consolo feito de caldas e mãos
pacientes.
Assim como as mulheres
negras e pobres que povoam a história esquecida das quitandeiras de Minas, Cora
resistiu com o que tinha: a mandioca ralada, o açúcar espumando no cobre, a
labuta cotidiana mascarada de receita. Seu bolo de mandioca não é prato: é relicário.
Ao prepará-lo, não se cozinha — se confessa. Se convoca a cozinha como altar, a
quitanda como trincheira, o ofício como afirmação de existência. Porque para
essas mulheres — para Cora, para todas — o gesto de mexer a massa é também o
gesto de ficar de pé no mundo. E o sabor que nasce dali é mais que gosto: é
sobrevivência com perfume de erva-doce.
E nesse manuseio antigo — o
polvilho cedendo sob os dedos, a massa ganhando corpo, o cheiro doce subindo
como prece — ergue-se uma força que não depende de palavras. A cada volta da
colher, o passado se reordena; a cada mistura, desmancha-se um pedaço da dureza
da vida; a cada fornada, reacende-se a esperança de que a existência pode, sim,
ser reparada em pequenas porções de doçura. O tacho, a lenha, o forno, o
tabuleiro: tudo ali é testemunha do que não se diz, mas permanece.
E quando o bolo enfim se
doura, quando a borda se arma em crosta fina e o cheiro invade a casa inteira,
não é apenas alimento que se anuncia — é uma história inteira que se oferece.
Uma história feita de mulheres que, mesmo diante da pobreza, do cansaço, do
preconceito, criaram seus próprios milagres domésticos. Mulheres que nunca
tiveram templos, púlpitos ou altares formais, mas que encontraram na cozinha a
arquitetura secreta de sua resistência.
Porque o que sai do forno
dessas quitandas não é só pão, bolo ou doce.
É coragem.
É continuidade.
É a prova de que, mesmo
quando tudo ao redor tenta reduzir uma vida ao silêncio, há sempre um caminho
que se faz com fogo, açúcar e fé.
Na doçura silenciosa da
quitanda, naquela umidade dourada que dança na superfície de um bolo de
mandioca recém-saído do forno, sobrevive o Brasil que mais importa — o Brasil
que resiste. Um país feito de quintais e panelas, onde a comida não é apenas
sustento, mas abrigo. Onde o fogão aceso é altar, e cada receita, uma reza de
corpo inteiro. Aqui, a comida fala. Ela diz o que o tempo não apaga, o que os
livros de história não contam, o que só a memória das mulheres pode sussurrar
ao ouvido de quem prova.
Cada quitute é uma oração:
feita com fé, com farinha e com dedos calejados. Ali onde a terra dá mandioca e
o galo canta cedo, a mulher transforma o bruto em bênção. Cada broa é um
testamento. Cada bolinho de milho, uma confidência à boca de quem morde. Cozinhar,
para essas mulheres, nunca foi apenas o ato de alimentar: foi, e sempre será,
uma forma de permanecer. De escrever na língua e no corpo do outro uma carta
invisível de eternidade.
E é nesse gesto —
aparentemente simples, discreto, cotidiano — que repousa uma grandeza antiga,
feita de fogo e paciência. Quando a massa se entrega ao forno e se
metamorfoseia em bolo, quando o cheiro se espalha pela casa e atravessa portas
entreabertas, nasce também um tipo de memória que não desbota. São memórias que
se colam ao ar, que se depositam nas frestas das janelas, que se enroscam nos
cabelos das crianças. Memórias que acompanham quem prova por toda a vida, como
se um pedaço de bolo pudesse carregar consigo a exatidão de uma tarde inteira —
a lenha estalando, a panela brilhando, a mão da mulher que amassa sabendo
exatamente o que faz, mesmo quando o mundo não sabe seu nome.
É por isso que, ao provar
uma quitanda, não se prova apenas o sabor.
Prova-se um lugar.
Prova-se um tempo.
Prova-se uma linhagem de
mulheres que, diante de todas as tentações do esquecimento, escolheram
continuar.
Porque essas quitandeiras —
de Minas, do Goiás de Cora, do Nordeste que se perfuma de coco e rapadura, das
cidades coloniais, das periferias de hoje — nunca alimentaram apenas corpos.
Alimentaram futuros. Mantiveram de pé aquilo que poderia ter desmoronado.
Guardaram a alma da casa, da rua, do bairro, do país, em tabuleiros que
brilharam ao sol como relíquias vivas.
E assim, no silêncio que se
instala quando o primeiro pedaço é partido, entende-se o essencial: que a
história do Brasil não foi escrita apenas com tinta, espada ou decreto — mas
também com açúcar, farinha e coragem.
E entre essas mulheres —
entre tantas — ergue-se, delicada e imensa, a figura de Cora Coralina.
Quitandeira por necessidade, doceira por herança, poeta por destino. Muito
antes que o Brasil lhe desse ouvidos, o povo já lhe conhecia o gosto. E era
bom. Procuravam-na na sua velha casa à beira da ponte, em Goiás Velho, como se
buscam benzeduras: com esperança nos olhos e um prato nas mãos. Seus doces
tinham fama — não de glória efêmera, mas de permanência: voltavam na boca dias
depois, como um verso bem dito ou uma lembrança de infância.
Cora moldava versos como
moldava seus bolos — com paciência, com fogo baixo, com a sabedoria ancestral
de quem conhece os tempos da massa e da alma. Enquanto mexia tachos de cobre,
tramava poemas que ninguém lia, mas que moravam inteiros dentro dela. Sua
cozinha foi seu primeiro livro. Suas colheres, penas de escrever. E o balcão de
doces que sustentava seus filhos e seus dias foi também sua primeira editora,
onde publicava sabores antes de publicar palavras.
Ali, entre o calor do forno
e o aroma de açúcar queimando, Cora encontrou liberdade que a vida ao lado de
Cantídio lhe negava. Cada compota de figo, cada doce de abóbora com coco era um
ato de afirmação: de que podia existir por inteiro, ainda que a sociedade e a
dureza do casamento tentassem contê-la. Cozinhar não era apenas preparar
alimento: era declarar ao mundo que sua voz, mesmo silenciada, continuava a
existir, e que sua imaginação, guardada nas receitas e nos gestos, jamais seria
aprisionada.
E quando, finalmente, seus
versos vieram à luz, o Brasil descobriu que aquela doceira antiga, de mãos
calejadas e olhos atentos, já havia ensinado seu povo a ler o mundo pelo
paladar. Cada poema de Cora era, afinal, feito da mesma matéria que seus doces:
tempo, paciência, memória e a certeza de que a beleza persiste quando se ama o
que se faz.
Como tantas quitandeiras
antes dela, que vendiam seus sonhos em tabuleiros trançados, entre o Império e
a República, entre o anonimato e a memória — Cora também soube transformar a
exclusão em arte. A falta de reconhecimento virou substância; o silêncio conjugal,
fermento; a ausência de espaço, mesa posta. E quando sua poesia finalmente
alcançou o mundo, tinha o gosto de pão quente, de compota guardada, de bolo de
mandioca repartido entre vizinhas.
É nesse cenário — onde o
açúcar encontra a palavra, onde a colher de pau escreve no tacho como quem
compõe um poema — que ressurge, manso e luminoso, o bolo de mandioca de Cora
Coralina. Rústico na forma, úmido como solo fértil, ele é mais que sobremesa: é
confissão em miolo macio, abraço ancestral que se desfaz na língua com a
delicadeza de uma lembrança boa. No corpo da massa está a raiz da mandioca —
planta forte, mulher da terra; no espírito, a leveza da poesia que brota entre
as frestas da vida dura.
Simples, sim — como tudo que
atravessa o tempo sem precisar de artifício. Forte — como a mulher que o
preparava em silêncio, enquanto o mundo lhe negava voz, e ela aprendia a cantar
com o açúcar, com o fogo, com a paciência que é própria de quem sabe que
resistir é também criar beleza.
Assim, o bolo de mandioca de
Cora Coralina não é apenas receita: é testemunho, memória viva que atravessa
mãos e tempos, de forno em forno, como uma prece que não precisa de altar. É a
doçura das mulheres que vieram antes — quitandeiras sem nome, mas de coragem
infinita, que conheciam o poder do fogo, da paciência e da espera. É
resistência que se desfaz em aroma de cravo e canela, ternura que se mastiga
devagar, como quem lê um poema em voz baixa, guardando cada palavra no corpo.
É poesia servida em prato de
ágata, mas sentida na pele e na memória. É Brasil profundo, feminino, invisível
aos livros, mas visível em cada gesto que dobra a massa, em cada forno aceso ao
amanhecer, em cada tabuleiro que se oferece ao mundo. Cresce em presença e
significado, silencioso, paciente, persistente. E nunca se apaga. Pois ali, na
textura que se amassa, no açúcar que derrete, nas mãos que moldam e repartem,
habita uma verdade antiga e invencível: que a vida, mesmo negada, pode
florescer em doçura; que a coragem pode habitar uma colher de pau; que a poesia
pode nascer do forno; e que o Brasil, sempre, se mantém de pé — suave, firme e
eterno, como um verso que nunca se esquece.
Salve, quitandeiras do
Brasil — mulheres de mãos que conhecem o calor do fogo, a paciência da massa e
o mistério do açúcar que derrete. Entre panelas e tabuleiros, erguiam altares
invisíveis, escrevendo histórias silenciosas que só a memória e o paladar podem
ler. Cada broa, cada bolo, cada doce é resistência que se oferece em forma de
ternura; é poesia sem palavra, feita de tempo, de cuidado e de coragem. E
assim, de quintal em quintal, de forno em forno, permanece um Brasil invisível
aos livros, mas vivo no cheiro do açúcar, na firmeza das mãos, no gesto que
dobra a massa com delicadeza e força. Silencioso e persistente, o Brasil das
quitandeiras cresce em cada receita passada, em cada tabuleiro que se oferece
ao mundo, suave, firme e eterno — como um verso guardado no coração.
BOLO DE MANDIOCA DA CORA CORALINA
1/2kg de mandioca crua ralada no ralo
grosso
1 xícara de queijo minas meia cura
ralado no ralo grosso (se não tiver use parmesão)
2 xicaras de açúcar
1 coco inteiro ralado (cerca de 2
xícaras de coco ralado)
Preparo: unte muito bem uma forma de
buraco com manteiga (se quiser polvilhar, use fubá) e reserve. Numa tigela
grande, coloque os ovos, a mandioca ralada, o queijo, o açúcar e o coco ralado
e misture bem até ficar homogêneo. Com a ajuda de uma colher coloque toda a
mistura na forma previamente preparada. Leve pra assar em forno pré-aquecido a
180 graus por 45 minutos. Esperar esfriar pra servir. Ele é cremoso e
delicioso.
Observação final: Esta
receita me foi transmitida pela oralidade, seguindo os ensinamentos de Cora
Coralina, como tantas outras tradições guardadas no calor do forno, no toque
das mãos e no cheiro da massa. Assim como existem inúmeros doces, compotas e quitandas
que Cora ensinou ou inspirou — e que ainda hoje circulam pelas cozinhas do
Brasil —, este bolo de mandioca é memória viva. Eu mesmo já compartilhei aqui
um doce de mamão enroladinho cuja receita também veio dela, fio invisível que
atravessa gerações.
Embora nesta versão o bolo
venha assado em forma de buraco, tradição comum para bolos densos, no Nordeste
e em muitos interiores do Brasil os bolos de mandioca eram assados em
tabuleiros quadrados. O formato facilitava a divisão em fatias regulares, vendidas
por quitandeiras — muitas vezes mulheres negras, pobres, que faziam do
tabuleiro sua fonte de sustento, oferecendo pequenos lucros com dignidade e
arte. Cada quadradinho de bolo, como cada broa ou doce de feira, era mais que
alimento: era resistência, sobrevivência e poesia comestível.
Por séculos, essas mulheres
de mãos calejadas, invisíveis à história oficial, perpetuaram receitas que não
constam nos livros, mas permanecem na memória de quem prova. Cada bolo, cada
tabuleiro, cada fatia repartida ao sol da feira ou ao calor da vizinhança
carrega coragem, tradição e doçura. Assim, de panela em panela, de forno em
tabuleiro, de mão em mão, a memória de Cora e das quitandeiras continua a se
espalhar — doce, firme e eterna.
Para sentir o eco dessas
mãos, dessa coragem e da doçura da vida, ouça “Meu Coração Vagabundo”, cantada
por Gal Costa e Caetano Veloso — uma canção que, como o bolo de mandioca, fala
de resistência, saudade e memória.













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