quinta-feira, 27 de novembro de 2025

AS MÃOS QUE ADOÇAM O MUNDO: SOBRE QUITANDEIRAS E O BOLO DE MANDIOCA DE CORA CORALINA

 

Há algo de mais antigo que o tempo nas quitandas brasileiras. Algo que escapa às horas e se deposita nos poros da madeira da mesa de cozinha, no pano puído do avental, no cheiro que se insinua pelas frestas da porta: forno aceso, milho ou mandioca ralada, açúcar se rendendo ao fogo, o café gemendo no coador de pano. Não são apenas bolos, roscas e biscoitos— são relicários de memória coletiva. Não são só quitandas — são catedrais do cotidiano, onde o sagrado era servido em prato de ágata.

Foi entre quintais de terra batida e becos de calçamento incerto que surgiram, como flores teimosas, as quitandeiras. Suas mãos — firmes como rochas, ternas como chuva mansa — sabiam do poder da repetição. Sabiam que bater um bolo era invocar a avó, a mãe, a tia. Sabiam que oferecer um biscoito era doar um pedaço da alma.

Quitandeira (a market scene), 1845. Frederico Guilherme Briggs. 1813-1870. Acervo Biblioteca Nacional Digital. 

Desde os dias sombrios do Brasil Colônia até o brilho inquieto do Brasil Imperial, era pelas mãos de tantas mulheres — negras em sua maioria, mas também indígenas, mestiças, brancas pobres e viúvas lançadas à própria sorte — que o país aprendia a se alimentar de si mesmo.

Elas surgiam ao amanhecer como sacerdotisas do cotidiano, carregando nos braços tabuleiros que eram ao mesmo tempo sustento e altar. E, nas frestas abertas pela violência e pelo silêncio imposto, erguiam seus pequenos reinos de cheiro e doçura: broas douradas, cocadas que cintilavam como luas breves, bolos cuja maciez parecia guardar segredos, beijus que traziam a memória mais antiga da terra.

Cada venda era um gesto de insurgência.

Cada receita, um fragmento de ancestralidade.

Cada sabor, a escrita clandestina de uma história que não coube nos livros. Assim, caminhando entre becos, largos e mercados, essas mulheres — múltiplas em origem, porém unidas pela mesma coragem — bordaram, com açúcar, fogo e fé, a primeira narrativa alimentar do Brasil: uma história feita de resistência, ternura e sobrevivência, que até hoje perfuma a memória do país como um perfume antigo que insiste em permanecer na pele.

Eram sacerdotisas de um culto sem templo, mas cheio de fé. Dentre elas, surgiam as quitandeiras de Congonhas, Ouro Preto, São João del-Rei, Sobral, Salvador, Rio de Janeiro — verdadeiras artífices do gosto, cujos saberes não vinham dos livros, mas do cheiro, do tempo da massa, do ouvido atento à bolha que se forma na panela. Seus saberes não moravam nos olhos, mas nos dedos. E o que faziam era mais que vender comida: perpetuavam a existência por meio da doçura.

E ali, nesses tabuleiros que tremiam levemente com o peso do dia, havia algo que beirava o sagrado. Cada broinha de milho era um sol domesticado; cada cocada, uma lua branca arrancada da noite; cada beiju, uma lembrança das primeiras mãos indígenas que moldaram o alimento da terra. Naquelas superfícies de madeira gasta repousava um altar que atravessava séculos, heranças e cicatrizes.

As quitandeiras caminhavam entre ladeiras, becos e largos como quem percorre um destino antigo. Havia em suas posturas uma espécie de nobreza rebelde — a dignidade que nasce não da ausência de dor, mas da ousadia de continuar apesar dela. O perfume que deixavam atrás de si era mais que cheiro de açúcar queimando, de massa assada, de coco recém-ralado: era uma declaração silenciosa de permanência.

Não anunciavam sua força em voz alta. Elas a sussurravam.

No rumor da panela.

No vapor que sobe.

No gesto exato de virar a massa antes que o mundo desabe.

E assim, dia após dia, teciam uma liturgia de sabores que desafiava o esquecimento. Alimentavam cidades inteiras e, sem pretender, nutriam também a memória do país — uma memória doce, firme e persistente, capaz de atravessar o tempo como uma braçada de luz atravessa a água escura.

Pois cada quitute que ofereciam era, no fundo, uma pequena redenção.

Uma promessa de que a vida continua.

Uma bênção servida em papel pardo.

E ao entregar um bolo, uma cocada, um pedaço de céu feito de farinha e fogo, elas devolviam ao mundo algo que o mundo tantas vezes lhes negara: a liberdade de criar beleza.

Com o século XX, o cenário muda: a escravidão fora abolida, mas não o preconceito. A informalidade persiste, agora nos quintais das casas, com fogões de lenha acesos ao amanhecer e tabuleiros à venda nas janelas e nas bancas colocadas na calçada, na rua. As quitandeiras, agora chamadas “tradicionais”, seguem ali, obstinadas, firmes, transformando ingredientes humildes — o leite, o polvilho, o fubá, a mandioca, o milho, o coco, as frutas locais — em oferendas de resistência.

Eram como guardiãs de um fogo que não podia se apagar. Nos quintais onde galinhas ciscavam o silêncio e o cheiro de lenha queimando se misturava ao da terra molhada, essas mulheres reinventavam diariamente a própria sobrevivência. O mundo mudara, sim — mas a mesa delas continuava sendo o primeiro altar de muitas manhãs brasileiras.

Cada iguaria que nascia de suas mãos carregava o peso de ancestralidades que o tempo tentara dispersar. O pão de queijo, inflado de ar e memória; o bolo de fubá que tremeluzia dourado como promessa de sol; os sequilhos que se desfaziam entre os dentes com a mesma delicadeza com que um segredo se dissolve no ouvido de quem sabe ouvir. Nada ali era apenas alimento. Havia neles a persistência daquilo que insiste em existir mesmo quando não há lugar para existir.

E se, antes, o tabuleiro lhes servira como arma silenciosa contra o apagamento, agora era também testemunha da persistência. Um tabuleiro numa janela, outro apoiado num caixote na calçada, outro equilibrado sobre um pano bordado — cada um desses pequenos altares dizia: aqui ainda pulsa o que tentaram calar.

As quitandeiras caminhavam entre a tradição e o cotidiano com uma espécie de gravidade suave — a gravidade de quem carrega histórias, de quem dosa o açúcar e a coragem na mesma medida. Não buscavam glória; buscavam apenas continuar. E, nesse continuar, moldavam o gosto de um país inteiro.

Porque resistir, para elas, nunca foi um grito.

Foi um gesto.

Foi um aroma.

Foi o estalo da lenha ardendo ao romper da manhã.

E assim, no século que prometia modernidade, elas mantiveram viva a mais antiga verdade da cozinha: que transformar o simples em extraordinário é, em si, uma forma de liberdade.

Entre elas, uma quitandeira que virou célebre, Cora Coralina — não apenas poetisa tardia, mas doceira desde sempre, alquimista de tachos e colher de pau. Muito antes que o Brasil a lesse, o povo já a provava, em compotas de figo, doces de abóbora com coco e bolos que perfumavam o ar ao redor da Casa da Ponte.

Era procurada como se procura uma santa — mas não para bênçãos, e sim para quitutes e quitandas — e ali, de portas entreabertas e mãos adoçadas de calda quente, Cora fazia o que tantas outras quitandeiras fizeram por séculos: alimentava corpos, adoçava almas e guardava silêncios.


Sua poesia nasceu depois, muito depois — quando já não partilhava a casa com aquele homem severo, vinte e tantos anos mais velho, cuja presença pesava como porta fechada.

Se juntara com o tal Cantídio Tolentino de Mesquita que, trouxe consigo não apenas os filhos de outra vida, mas também os fantasmas de problemas com a lei que o perseguiam como um eco constante. Não houve casamento oficial, apenas uma convivência marcada por impedimentos legais e pelo estigma cruel que a época impunha às mulheres que ousavam amar fora das convenções.

E Cora, tão jovem, suportou esse peso sozinha: o olhar torto da cidade, o julgamento serrado das vizinhas, a violência silenciosa de uma vida construída sobre a corda bamba da precariedade. Ainda assim, foi nessa atmosfera áspera e clandestina que ela continuou acendendo fogões, criando filhos, moldando doces — e guardando dentro do peito uma voz que só muito mais tarde encontraria liberdade para nascer.

Esse homem lhe tolheu os sonhos, abafou conversas, diminuiu gestos, instalou silêncios que doíam mais que gritos. Era um companheiro de sombras: duro, desconfiado, incapaz de ternura, trazendo consigo o peso das próprias culpas e das próprias falhas perante a lei, que recaíam sobre ela como um fardo que nunca lhe pertenceu.

Durante décadas, Cora viveu entre as paredes estreitas de uma vida comandada por ele — cuidando de filhos e enteados, sustentando a casa com seu trabalho, suportando a pobreza e as línguas afiadas de uma sociedade que a julgava, mas nunca a enxergava. Sua voz, naquele tempo, não encontrava espaço. O que existia era a panela — sempre ela —, a colher de pau que girava no tacho como quem guarda uma chama secreta.


E talvez tenha sido por isso que sua poesia demorou a nascer: porque antes precisou sobreviver ao apagamento.

Precisou resistir ao marido que a queria pequena, dócil, muda.

Precisou cultivar dentro de si uma palavra que ele não podia ouvir, mas que ela jamais deixou morrer.

Foi só depois de sua morte, quando enfim se viu livre da atmosfera pesada que durante tantos anos lhe roubou o ar, que sua escrita floresceu — tardia como uma flor de inverno, sim, mas tão forte que rasgou o tempo.

Porque mesmo que ele lhe calasse a voz, Cora nunca deixou de acender o fogo — e foi desse fogo que surgiram seus versos.

E talvez tenha sido justamente ali, nos longos anos em que suas palavras ficaram confinadas ao coração, que sua escrita fermentou — como massa que cresce no escuro, paciente, esperando o momento exato de se revelar. A cozinha foi seu refúgio, sua oficina de encantamentos, onde cada fruta pedaçuda, cada calda âmbar, cada panela pesada lhe oferecia uma liberdade que o mundo ainda lhe negava.

Enquanto a vida a tratava com aspereza, Cora devolvia ao mundo um universo de doçuras.

Era no tacho de cobre que ela deixava repousar aquilo que não podia confidenciar a ninguém. Era sua confidente.

A colher de pau, sua cúmplice.

O fogo, seu grande revelador.

Em cada doce que fazia, havia uma pequena desobediência — uma afirmação de que algo nela sobreviveria intacto, apesar das sombras domésticas, apesar das restrições, apesar do silêncio imposto. Ao redor dela, a cidade de Goiás se perfumava com um misticismo culinário, como se cada tijolinho colonial estivesse impregnado de açúcar, calda e resistência.

Quando, enfim, seus versos vieram à luz, o Brasil descobriu que aquela doceira de avental manchado de melado era também uma poeta de alma incendiada — mas, no fundo, nada disso surpreendia seus vizinhos. Eles já sabiam que havia grandeza naquelas mãos que mexiam a panela. Sabiam que seus doces eram mais que doces: eram confidências, eram memórias eternizadas, eram traduções comestíveis de uma vida inteira guardada em cadernos invisíveis.

Sua poesia — que chegou tardia, sim, mas chegou inteira — não nasceu dos livros.

Nasceu dos tachos.

Nasceu do vapor que sobe quando o açúcar encontra o fogo.

Nasceu do gesto feminino e ancestral de transformar dor em doçura, e doçura em permanência.

Porque antes de ser lida, Cora foi saboreada. Antes de ser a poeta que o mundo reverencia, foi a quitandeira, e o povo já encontrava nela um consolo feito de caldas e mãos pacientes.





Assim como as mulheres negras e pobres que povoam a história esquecida das quitandeiras de Minas, Cora resistiu com o que tinha: a mandioca ralada, o açúcar espumando no cobre, a labuta cotidiana mascarada de receita. Seu bolo de mandioca não é prato: é relicário. Ao prepará-lo, não se cozinha — se confessa. Se convoca a cozinha como altar, a quitanda como trincheira, o ofício como afirmação de existência. Porque para essas mulheres — para Cora, para todas — o gesto de mexer a massa é também o gesto de ficar de pé no mundo. E o sabor que nasce dali é mais que gosto: é sobrevivência com perfume de erva-doce.

E nesse manuseio antigo — o polvilho cedendo sob os dedos, a massa ganhando corpo, o cheiro doce subindo como prece — ergue-se uma força que não depende de palavras. A cada volta da colher, o passado se reordena; a cada mistura, desmancha-se um pedaço da dureza da vida; a cada fornada, reacende-se a esperança de que a existência pode, sim, ser reparada em pequenas porções de doçura. O tacho, a lenha, o forno, o tabuleiro: tudo ali é testemunha do que não se diz, mas permanece.

E quando o bolo enfim se doura, quando a borda se arma em crosta fina e o cheiro invade a casa inteira, não é apenas alimento que se anuncia — é uma história inteira que se oferece. Uma história feita de mulheres que, mesmo diante da pobreza, do cansaço, do preconceito, criaram seus próprios milagres domésticos. Mulheres que nunca tiveram templos, púlpitos ou altares formais, mas que encontraram na cozinha a arquitetura secreta de sua resistência.

Porque o que sai do forno dessas quitandas não é só pão, bolo ou doce.

É coragem.

É continuidade.

É a prova de que, mesmo quando tudo ao redor tenta reduzir uma vida ao silêncio, há sempre um caminho que se faz com fogo, açúcar e fé.

Na doçura silenciosa da quitanda, naquela umidade dourada que dança na superfície de um bolo de mandioca recém-saído do forno, sobrevive o Brasil que mais importa — o Brasil que resiste. Um país feito de quintais e panelas, onde a comida não é apenas sustento, mas abrigo. Onde o fogão aceso é altar, e cada receita, uma reza de corpo inteiro. Aqui, a comida fala. Ela diz o que o tempo não apaga, o que os livros de história não contam, o que só a memória das mulheres pode sussurrar ao ouvido de quem prova.

Cada quitute é uma oração: feita com fé, com farinha e com dedos calejados. Ali onde a terra dá mandioca e o galo canta cedo, a mulher transforma o bruto em bênção. Cada broa é um testamento. Cada bolinho de milho, uma confidência à boca de quem morde. Cozinhar, para essas mulheres, nunca foi apenas o ato de alimentar: foi, e sempre será, uma forma de permanecer. De escrever na língua e no corpo do outro uma carta invisível de eternidade.

E é nesse gesto — aparentemente simples, discreto, cotidiano — que repousa uma grandeza antiga, feita de fogo e paciência. Quando a massa se entrega ao forno e se metamorfoseia em bolo, quando o cheiro se espalha pela casa e atravessa portas entreabertas, nasce também um tipo de memória que não desbota. São memórias que se colam ao ar, que se depositam nas frestas das janelas, que se enroscam nos cabelos das crianças. Memórias que acompanham quem prova por toda a vida, como se um pedaço de bolo pudesse carregar consigo a exatidão de uma tarde inteira — a lenha estalando, a panela brilhando, a mão da mulher que amassa sabendo exatamente o que faz, mesmo quando o mundo não sabe seu nome.

É por isso que, ao provar uma quitanda, não se prova apenas o sabor.

Prova-se um lugar.

Prova-se um tempo.

Prova-se uma linhagem de mulheres que, diante de todas as tentações do esquecimento, escolheram continuar.

Porque essas quitandeiras — de Minas, do Goiás de Cora, do Nordeste que se perfuma de coco e rapadura, das cidades coloniais, das periferias de hoje — nunca alimentaram apenas corpos. Alimentaram futuros. Mantiveram de pé aquilo que poderia ter desmoronado. Guardaram a alma da casa, da rua, do bairro, do país, em tabuleiros que brilharam ao sol como relíquias vivas.

E assim, no silêncio que se instala quando o primeiro pedaço é partido, entende-se o essencial: que a história do Brasil não foi escrita apenas com tinta, espada ou decreto — mas também com açúcar, farinha e coragem.

E entre essas mulheres — entre tantas — ergue-se, delicada e imensa, a figura de Cora Coralina. Quitandeira por necessidade, doceira por herança, poeta por destino. Muito antes que o Brasil lhe desse ouvidos, o povo já lhe conhecia o gosto. E era bom. Procuravam-na na sua velha casa à beira da ponte, em Goiás Velho, como se buscam benzeduras: com esperança nos olhos e um prato nas mãos. Seus doces tinham fama — não de glória efêmera, mas de permanência: voltavam na boca dias depois, como um verso bem dito ou uma lembrança de infância.

Cora moldava versos como moldava seus bolos — com paciência, com fogo baixo, com a sabedoria ancestral de quem conhece os tempos da massa e da alma. Enquanto mexia tachos de cobre, tramava poemas que ninguém lia, mas que moravam inteiros dentro dela. Sua cozinha foi seu primeiro livro. Suas colheres, penas de escrever. E o balcão de doces que sustentava seus filhos e seus dias foi também sua primeira editora, onde publicava sabores antes de publicar palavras.

Ali, entre o calor do forno e o aroma de açúcar queimando, Cora encontrou liberdade que a vida ao lado de Cantídio lhe negava. Cada compota de figo, cada doce de abóbora com coco era um ato de afirmação: de que podia existir por inteiro, ainda que a sociedade e a dureza do casamento tentassem contê-la. Cozinhar não era apenas preparar alimento: era declarar ao mundo que sua voz, mesmo silenciada, continuava a existir, e que sua imaginação, guardada nas receitas e nos gestos, jamais seria aprisionada.

E quando, finalmente, seus versos vieram à luz, o Brasil descobriu que aquela doceira antiga, de mãos calejadas e olhos atentos, já havia ensinado seu povo a ler o mundo pelo paladar. Cada poema de Cora era, afinal, feito da mesma matéria que seus doces: tempo, paciência, memória e a certeza de que a beleza persiste quando se ama o que se faz.

Como tantas quitandeiras antes dela, que vendiam seus sonhos em tabuleiros trançados, entre o Império e a República, entre o anonimato e a memória — Cora também soube transformar a exclusão em arte. A falta de reconhecimento virou substância; o silêncio conjugal, fermento; a ausência de espaço, mesa posta. E quando sua poesia finalmente alcançou o mundo, tinha o gosto de pão quente, de compota guardada, de bolo de mandioca repartido entre vizinhas.

É nesse cenário — onde o açúcar encontra a palavra, onde a colher de pau escreve no tacho como quem compõe um poema — que ressurge, manso e luminoso, o bolo de mandioca de Cora Coralina. Rústico na forma, úmido como solo fértil, ele é mais que sobremesa: é confissão em miolo macio, abraço ancestral que se desfaz na língua com a delicadeza de uma lembrança boa. No corpo da massa está a raiz da mandioca — planta forte, mulher da terra; no espírito, a leveza da poesia que brota entre as frestas da vida dura.

Simples, sim — como tudo que atravessa o tempo sem precisar de artifício. Forte — como a mulher que o preparava em silêncio, enquanto o mundo lhe negava voz, e ela aprendia a cantar com o açúcar, com o fogo, com a paciência que é própria de quem sabe que resistir é também criar beleza.

Assim, o bolo de mandioca de Cora Coralina não é apenas receita: é testemunho, memória viva que atravessa mãos e tempos, de forno em forno, como uma prece que não precisa de altar. É a doçura das mulheres que vieram antes — quitandeiras sem nome, mas de coragem infinita, que conheciam o poder do fogo, da paciência e da espera. É resistência que se desfaz em aroma de cravo e canela, ternura que se mastiga devagar, como quem lê um poema em voz baixa, guardando cada palavra no corpo.

É poesia servida em prato de ágata, mas sentida na pele e na memória. É Brasil profundo, feminino, invisível aos livros, mas visível em cada gesto que dobra a massa, em cada forno aceso ao amanhecer, em cada tabuleiro que se oferece ao mundo. Cresce em presença e significado, silencioso, paciente, persistente. E nunca se apaga. Pois ali, na textura que se amassa, no açúcar que derrete, nas mãos que moldam e repartem, habita uma verdade antiga e invencível: que a vida, mesmo negada, pode florescer em doçura; que a coragem pode habitar uma colher de pau; que a poesia pode nascer do forno; e que o Brasil, sempre, se mantém de pé — suave, firme e eterno, como um verso que nunca se esquece.

Salve, quitandeiras do Brasil — mulheres de mãos que conhecem o calor do fogo, a paciência da massa e o mistério do açúcar que derrete. Entre panelas e tabuleiros, erguiam altares invisíveis, escrevendo histórias silenciosas que só a memória e o paladar podem ler. Cada broa, cada bolo, cada doce é resistência que se oferece em forma de ternura; é poesia sem palavra, feita de tempo, de cuidado e de coragem. E assim, de quintal em quintal, de forno em forno, permanece um Brasil invisível aos livros, mas vivo no cheiro do açúcar, na firmeza das mãos, no gesto que dobra a massa com delicadeza e força. Silencioso e persistente, o Brasil das quitandeiras cresce em cada receita passada, em cada tabuleiro que se oferece ao mundo, suave, firme e eterno — como um verso guardado no coração.

BOLO DE MANDIOCA DA CORA CORALINA

6 ovos inteiros batidos ligeiramente

1/2kg de mandioca crua ralada no ralo grosso

1 xícara de queijo minas meia cura ralado no ralo grosso (se não tiver use parmesão)

2 xicaras de açúcar

1 coco inteiro ralado (cerca de 2 xícaras de coco ralado)

Preparo: unte muito bem uma forma de buraco com manteiga (se quiser polvilhar, use fubá) e reserve. Numa tigela grande, coloque os ovos, a mandioca ralada, o queijo, o açúcar e o coco ralado e misture bem até ficar homogêneo. Com a ajuda de uma colher coloque toda a mistura na forma previamente preparada. Leve pra assar em forno pré-aquecido a 180 graus por 45 minutos. Esperar esfriar pra servir. Ele é cremoso e delicioso.

Observação final: Esta receita me foi transmitida pela oralidade, seguindo os ensinamentos de Cora Coralina, como tantas outras tradições guardadas no calor do forno, no toque das mãos e no cheiro da massa. Assim como existem inúmeros doces, compotas e quitandas que Cora ensinou ou inspirou — e que ainda hoje circulam pelas cozinhas do Brasil —, este bolo de mandioca é memória viva. Eu mesmo já compartilhei aqui um doce de mamão enroladinho cuja receita também veio dela, fio invisível que atravessa gerações.

Embora nesta versão o bolo venha assado em forma de buraco, tradição comum para bolos densos, no Nordeste e em muitos interiores do Brasil os bolos de mandioca eram assados em tabuleiros quadrados. O formato facilitava a divisão em fatias regulares, vendidas por quitandeiras — muitas vezes mulheres negras, pobres, que faziam do tabuleiro sua fonte de sustento, oferecendo pequenos lucros com dignidade e arte. Cada quadradinho de bolo, como cada broa ou doce de feira, era mais que alimento: era resistência, sobrevivência e poesia comestível.

Por séculos, essas mulheres de mãos calejadas, invisíveis à história oficial, perpetuaram receitas que não constam nos livros, mas permanecem na memória de quem prova. Cada bolo, cada tabuleiro, cada fatia repartida ao sol da feira ou ao calor da vizinhança carrega coragem, tradição e doçura. Assim, de panela em panela, de forno em tabuleiro, de mão em mão, a memória de Cora e das quitandeiras continua a se espalhar — doce, firme e eterna.

Para sentir o eco dessas mãos, dessa coragem e da doçura da vida, ouça “Meu Coração Vagabundo”, cantada por Gal Costa e Caetano Veloso — uma canção que, como o bolo de mandioca, fala de resistência, saudade e memória.

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