Sempre fui apaixonado pela
escrita — não como quem escolhe um passatempo, mas como quem reconhece, num
sussurro íntimo, a própria natureza. Lembro-me, com uma nitidez quase
sobrenatural, de ter dez ou onze anos quando meu avô paterno, Mário Coelho — o
querido vô Bidade — fazia de mim seu pequeno espetáculo doméstico. Bastava que
alguma visita atravessasse a soleira para que ele, altivo como um mestre de
cerimônias, anunciasse: “Este menino é muito inteligente. Recebe cartas do
Brasil inteiro… e até do estrangeiro. Todo dia chega uma diferente. É tão
sabido que ele entende até o que os estrangeiros escrevem!”
Eu permanecia ali, meio
imóvel, enquanto a mão da visita deslizava pelos meus cabelos num gesto que
misturava afeto e uma espécie de consagração silenciosa. O arrepio que me subia
pela nuca era tímido, mas cheio daquele orgulho inconfessável que as crianças
não sabem nomear. Eu sorria de canto, envergonhado — e então vinha a ordem do
avô, soberana: que eu fosse buscar as cartas mais recentes, prova viva de que
sua história não era exagero.
E não era mesmo. Desde muito
cedo, em uma época em que se escreviam cartas com a mesma solenidade com que se
acende uma vela, eu me encantava com o ritual: papel, envelope, selo, a
caligrafia se derramando conforme o coração ditava. Grande parte das correspondências
que ia e vinha pertencia aos lendários SACs (Serviço de Atendimento ao
Consumidor) das empresas alimentícias — Nestlé, Lacta, Garoto, Maizena, e mais
tarde Unilever, Hellmann’s, Pó Royal, um universo inteiro de marcas que
existiam, para mim, como personagens magnânimas.
E, no fundo, havia ali um
indício silencioso do que mais tarde se tornaria parte vital de quem eu sou:
meu fascínio pela comida, por seus mistérios, por tudo o que vive entre o sabor
e a memória. Eu escrevia para aquelas empresas movido por uma curiosidade quase
científica — queria entender por que certos chocolates derretiam mais rápido,
por que um fermento fazia o bolo erguer-se como uma catedral, ou como o cheiro
de uma sopa podia mudar o humor de uma casa inteira.
E, para minha fortuna,
naquele tempo as empresas ainda tratavam seus consumidores com uma delicadeza
quase artesanal: respondiam a cada carta com esmero, enviavam folhetos
ilustrados, pequenos livrinhos de receitas, amostras que pareciam tesouros, e
às vezes até delícias embrulhadas com uma generosidade que hoje parece
improvável. Cada envelope que chegava não trazia apenas resposta — trazia
alimento para a minha imaginação, para o meu paladar e para uma vocação que,
sem eu saber, já se desenhava.
Naquele tempo, as empresas
ainda cultivavam o hábito de conversar com seus consumidores, quase como
vizinhos que dividem receitas no portão. Ofereciam cursos, mandavam pequenos
livros culinários, brindes coloridos. E assim, dia após dia, o carteiro deixava
em nossa casa um punhado de envelopes que pareciam conter mundos — e era por
isso que Bidade tanto me exibia: porque a casa se enchia de cartas, e eu,
menino ainda, era o ponto onde todas elas se encontravam.
No cenário internacional,
tudo assumia um brilho mais raro, quase encantatório. Eu sonhava estudar no
Velho Mundo, e, como mensageiros de um destino possível, empresas de
intercâmbio e colégios estrangeiros enviavam programas, convites e um mundo de
papéis perfumados de promessa. Era uma festa cada vez que o carteiro surgia aos
berros no portão — e o cachorro, em sua travessura jubilosa, corria para
decidir se abocanhava a correspondência ou a canela do mensageiro. Para minha
sorte, as cartas sempre saíam ilesas, e o carteiro, rendido ao afeto canino,
acabou tornando-se seu amigo fiel.
Essa intimidade com a
comunicação epistolar moldou profundamente meu modo de existir. Eu era feito de
envelopes, selos e expectativas. Foi só com o avanço da internet discada — não
ria, se você não conheceu esse período quase paleontológico da tecnologia — que
o velho ritual começou a se dissolver no ar.
Eu tinha treze anos quando a
internet se abriu ao público brasileiro, em 1995. Antes disso, a primeira
conexão do país com esse vasto organismo digital surgira em 1991, restrita ao
ambiente acadêmico, um fio sutil estendido entre a FAPESP e universidades
norte-americanas. Só em 1995 é que a Internet se tornou comercial, ganhando
corpo, voz e acesso às casas comuns — e lentamente transformando o modo como o
mundo nos encontrava.
Entre o fim de 1999 e o
alvorecer de 2000, quando a América Online Brasil — a lendária AOL — abriu seus
portões digitais, eu celebrei com a euforia de quem observa o surgimento de uma
nova constelação. Mas não era apenas a AOL que brilhava no céu da conexão:
havia também a BOL (Brasil On-Line) e a iG (Internet Group), dois mastros
importantes desse universo nascente. A BOL foi lançada em abril de 1996 pelo
Grupo Abril e, pouco depois, incorporada ao UOL – daí você entender porque
vinha com CDs de gratuidade junto de revistas. Em outubro de 1999, tornou-se
pioneira no Brasil como provedor de e-mail gratuito, e em agosto de 2000 já
contabilizava mais de 4 milhões de contas registradas. Já a iG (Internet Group)
lançou-se no mercado por volta de 2000, oferecendo desde então serviços de
portal, notícias e provedor discado.
Era um tempo em que o futuro
ainda vinha pelo correio: envelopes espessos, propaganda reluzente, e, dentro
deles, pequenos discos prateados que prometiam acesso a um reino invisível.
Revistas que eu assinava, lojas que queriam seduzir clientes, empresas em busca
de um aceno… todas me enviavam aqueles CDs de instalação, talismãs modernos que
iluminavam a mesa onde eu os empilhava como quem coleciona luas. E havia mais —
encontravam-se à venda nas livrarias, repousando entre romances e manuais, ou
então como brindes esquecidos em bancas de jornal, supermercados, esquinas.
Cada um sussurrava a mesma promessa: horas grátis de internet discada.
Mas a internet discada… ah,
essa criatura de outra era — é preciso contá-la para quem nasceu depois, para
quem nunca ouviu sua voz. Ela não era uma corrente silenciosa como hoje, mas um
ritual. Primeiro, conectava-se o cabo telefônico ao computador, como se
costurássemos dois mundos distintos. Depois, ao clicar em “conectar”, começava
um canto estranho: estalos metálicos, guinchos agudos, um zumbido que parecia
emergir das entranhas da própria máquina. Era o modem chamando um outro modem,
dois espíritos tentando se reconhecer através dos fios da casa inteira. Só
quando o ruído terminava — um suspiro final, quase um selo — é que o portal se
abria.
E, no instante da conexão, a
casa mudava. O telefone se calava, interditado. Tudo parecia suspenso, como se
a própria noite prendesse a respiração. A internet era lenta, sim, mas tinha a
intensidade de algo recém-nascido, algo que exigia presença, paciência, quase
devoção. As páginas se formavam em lentas camadas, revelando-se como pintura
que se completa aos poucos. Cada segundo era conquista. Cada minuto,
descoberta. A simples chegada a um site tinha o gosto cerimonioso de atravessar
um corredor de velas.
Assim era o mundo naquela
época: mágico em sua precariedade, terno em seu barulho estranho, íntimo como
um segredo compartilhado entre máquinas e humanos. E eu, cercado de meus
inúmeros CDs cintilantes, acreditava, com a mesma fé dos alquimistas, que ali —
naquele chiado de modem, naquele fio que roubava o telefone — residia o início
de algo que mudaria tudo.
Dentre as muitas novidades
trazidas pela internet, o e-mail, era uma forma mais rápida de correspondência.
Acho que minha primeira conta de e-mail foi exatamente com a BOL — esse
endereço @bol.com.br que, para mim, era como possuir uma chave para atender o
mundo. E, sim, a BOL ainda existe — embora seu papel tenha mudado bastante com
o tempo, ela continua funcionando dentro do universo do UOL. Talvez não resista
mais à velocidade vertiginosa da internet moderna, mas no meu horizonte
adolescente ela era tudo.
Mas, para usar E-Mail,
naquela época, era preciso estar atualizado; entrei em cursos de informática e
de como usar a internet, algo que, na época, era extremamente moderno, chique
até. Uma verdadeira evolução: eu ainda usava máquina de escrever, e aprender
comandos de computador era quase uma revolução. Somente nos anos 2000, com o
início da internet banda larga, houve o declínio da AOL e das demais conexões
discadas. Mas aquele barulhinho de modem, inconfundível, ainda ecoa na memória.
A minha correspondência
física aumentou com a chegada do e-mail, que chegava mais rápido, e com a
automação das malas diretas que despachavam materiais para mim. Até o ano 2000,
recebia muitas cartas físicas, muito mais do que e-mails — completamente diferente
do que acontece hoje, quando tudo é feito por e-mail ou WhatsApp.
Mas eu sempre tive uma
devoção quase litúrgica pelas cartas. Colecionava papéis de carta como quem
guarda fragmentos de um mundo mais delicado — alguns eram tão belos que eu
jamais ousava escrever neles, preservados como relíquias. Ajuntava também
selos, moedas antigas, cartões de felicitação que pareciam carregar ecos de
outras vidas. E me encantavam, sobretudo, os livros em que a alma da narrativa
era conduzida por correspondências — como se a história respirasse através de
envelopes.
Entre esses livros, havia um
farol: Drácula, de Bram Stoker. E o curioso é que minha primeira leitura não
foi num volume impresso, mas num ritual quase clandestino. Eu tinha treze anos
quando, graças à internet discada, consegui acessar uma biblioteca britânica
que oferecia o romance para download gratuito. A lentidão daquela conexão — e
seu feitiço — exigia astúcia. Cada CD de acesso garantia apenas uma hora de
navegação, e os arquivos eram pesados demais para abrir sem paciência
monástica. Assim, inventei um método: abria o livro digital com a solenidade de
quem empurra uma porta antiga, e tentava imprimir um capítulo por vez, se o
tempo, o modem e os deuses da conexão permitissem.
Demorei semanas inteiras
para conquistar todas aquelas páginas, capítulo após capítulo, como quem
recolhe peças de um corpo adormecido. E quando enfim tive o livro completo nas
mãos — impresso, desalinhado, mas inteiro — senti que não possuía ainda a história
em sua profundidade; havia apenas trazido Drácula até mim, página a página
arrancada ao fluxo caprichoso daquela internet pré-histórica, como quem convoca
uma presença que ainda precisa ser decifrada (se tiver curiosidade, veja ISSO).
E, para completar o ritual,
havia o temperamento instável das primeiras impressoras — criaturas
barulhentas, quase ofegantes. Às vezes engasgavam com o papel, mastigando
bordas e cuspindo folhas tortas; outras, famintas de toner, entregavam páginas
pálidas, quase ilegíveis, como se o próprio texto se dissolvesse em névoa. Era
comum precisar recomeçar tudo, paciente e obstinado, até que cada capítulo
viesse ao mundo com alguma dignidade. E assim, entre rangidos mecânicos e
páginas renascidas, o livro ia tomando forma — fragmentado, imperfeito, mas
meu.
Depois disso, surgiu outro
desafio: eu já entendia inglês, talvez até melhor do que hoje, mas não sabia se
meu inglês era suficiente para compreender tudo. Descobri então a possibilidade
de usar dicionários online, e isso ajudou muito. Minha impressão do livro se
tornou uma verdadeira aventura: cheia de rabiscos, círculos em palavras
inglesas, setas apontando traduções… um mapa pessoal, detalhado, que
acompanhava cada frase, cada mistério do texto.
E por que contar tudo isso?
Porque, ao falar hoje da torta Karpatka, descubro que meu caminho até ela passa
exatamente por essas memórias: cartas enviadas e recebidas, CDs de internet
discada, páginas engolidas e cuspidas por impressoras primitivas, rabiscos de
tradução, coleções que guardavam o mundo em miniatura, bibliotecas virtuais que
rangiam como portas antigas. Tudo isso se enlaça e, como num feitiço suave,
conduz direto a Drácula, de Bram Stoker — ponte delicada e inesperada entre
minha adolescência inquieta e o bolo polonês que evoca os Cárpatos, a névoa
gótica, os picos irregulares e a doçura clandestina da descoberta.
DRÁCULA DE BRAM STOKER E A REPRESENTAÇÃO
DOS CÁRPATOS
Eu não nego: sempre tive uma
queda visceral pelos vampiros — esses ícones da literatura fantástica que vivem
entre o sagrado e o proibido. E entre todos eles, Drácula permanece como o
monarca absoluto, a sombra mais alta, o eco mais persistente.
Meu fascínio era tão vasto,
tão antigo em mim quanto um perfume esquecido numa gaveta de infância, que, anos
depois, nos corredores silenciosos do meu Mestrado em Turismo, não pude senão
transformá-lo em objeto de devoção acadêmica. Ali, entre mapas, teorias e
madrugadas insones, ele tomou forma de pesquisa — e dessa alquimia nasceu um
artigo científico, “Turismo e balcanismo a partir do Drácula de Bram Stoker”,
publicado em 2015 pela RITUR, a Revista Iberoamericana de Turismo.
Foi nesse mergulho profundo,
quase um pacto silencioso com sombras e arquivos, que encontrei uma verdade tão
inquietante quanto sedutora: o Drácula vampiro que o Ocidente venerou com ardor
— esse monarca noturno, envolto em mitos e sangue literário — permanecera, por
décadas, quase invisível aos olhos de seu próprio povo. Como se o vampiro
houvesse sido expulso do solo que o concebeu, para então renascer, glorioso e
distorcido, nas páginas estrangeiras que o adotaram. Um exilado tornado lenda,
retornando apenas em eco. Para quem desejar se aprofundar nesse labirinto
fascinante, o artigo está disponível aqui: AQUI,
O “castelo de Bram” — a sedução turística do mito. Há um castelo na Romênia que muitos juram ser o lar de Drácula — e de certa forma ele é, mas somente no mesmo sentido em que um palco se torna, por uma noite, a morada temporária de um personagem inventado. O Castelo de Bran, com suas ameias afiadas e paredes brancas que cintilam como ossos sob a neve dos Cárpatos, tornou-se o castelo de Bram: a versão turística, cuidadosamente polida, de um lar imaginado por Bram Stoker, apesar de o escritor jamais ter cruzado aquelas montanhas. Ele é vendido ao viajante com a mesma doçura ardilosa com que um confeiteiro oferece um doce que parece antigo, mas foi criado na véspera. Seu interior ecoa de histórias, sim — mas são histórias herdadas, moldadas pelo desejo ocidental de encontrar, naquele penhasco, a morada do vampiro mais célebre do mundo. Não é o castelo do romance, e tampouco é o castelo verdadeiro de Vlad. Mas é, talvez, o castelo que os turistas querem ver: cênico, gótico, quase teatral.
Mas voltemos ao que importa
aqui. A primeira coisa que me arrebatou em Drácula foi seu formato: o romance
inteiro é tecido como uma grande colcha epistolar. Diários, cartas, telegramas,
recortes de jornal e, em algumas partes, memorandos — cada fragmento é uma
janela entreaberta, cada voz uma pulsação distinta, cada documento uma peça de
um mosaico de horror e fascínio. É como seguir as pegadas de uma criatura que
nunca se mostra inteira, mas cuja presença se insinua em cada página, em cada
silêncio. Uma aventura fragmentada e febril, construída sobre o vampiro mais
célebre do imaginário humano — entidade que, desde então, habita algum canto
meu, tão viva quanto as velhas cartas guardadas em caixas e gavetas.
Naquela época, ainda não
conhecia Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu, publicada em 1872 — vinte e
cinco anos antes de Drácula. Essa novella gótica possui um peso quase
ancestral: uma das primeiras histórias de vampiros claramente delineadas na
literatura moderna. Introduz uma vampira feminina que estabelece uma relação
íntima e intensa com a protagonista Laura, carregada de um subtexto homoerótico
sutil, e deixou marcas profundas em muitas obras que se seguiram, inclusive
Drácula.
Ainda assim, foi o cinema
ocidental que, provavelmente, me conduziu primeiro ao conde vampiro
transilvano. Confesso que degustava o livro aos poucos, com a ansiedade de quem
prova uma iguaria proibida. Fiquei particularmente impactado — e enlevado, e um
tanto constrangido — com as passagens das chamadas “prostitutas do demônio”.
(Ria-se, se quiser; eu ria comigo mesmo)
Desde as primeiras páginas,
Stoker constrói um mundo vívido e opressivo, descrevendo tudo com uma riqueza
de detalhes que beira o ritual: os picos sombrios dos Cárpatos, a névoa que
escorrega sobre os vales, o frio cortante que parece penetrar pelas palavras,
e, é claro, o próprio monstro que paira nas sombras. Para não deixar o relato
demasiado extenso — como se eu conseguisse domar a vastidão do texto original —
deixarei apenas alguns trechos, acompanhados de minha própria tradução,
selecionados com cuidado, como se cada fragmento fosse uma joia escolhida para
revelar o essencial da presença gótica que me fascinou.
“Diário de Jonathan
Harker
Local: Bistritz,
Transilvânia
3 de maio de 1897.
Saí de Munique no dia 1º de maio, às 20h35, e cheguei a Viena na manhã seguinte; deveria ter chegado a Bistritz na manhã de 5 de maio, mas o trem atrasou. Ao atravessar a fronteira húngara, percebi uma mudança completa na paisagem e nas pessoas. [...] À medida que avançávamos, o caminho se tornava cada vez mais acidentado, e finalmente entramos nos Cárpatos, uma das regiões mais selvagens e menos conhecidas da Europa. Nunca tinha visto nada igual à beleza de suas encostas e vales profundos, das florestas de faias e pinheiros, e das ravinas que, de vez em quando, se abriam diante de nós.”
“Diário de Jonathan
Harker
4 de maio — A caminho dos
Cárpatos.
A região dos Cárpatos é cheia de uma beleza selvagem e misteriosa. As pessoas que encontrei são de muitos tipos — saxões, magiares e valáquios —, mas todas parecem possuir uma superstição profunda. Quando mencionei o nome do Conde Drácula, os camponeses se benzeram e recusaram-se a continuar o assunto. [...] É curioso observar como essas montanhas parecem esconder segredos antigos, como se cada colina tivesse sua própria história e cada vale seu espírito guardião.”
“Diário de Jonathan
Harker
5 de maio de 1897.
Castelo do Conde Drácula.
O crepúsculo caía quando
partimos de Bistritz. As sombras das montanhas estendiam-se como asas gigantes
sobre o vale, e o frio tornava-se mais intenso à medida que subíamos. O luar
surgiu entre as nuvens, iluminando os picos nevados dos Cárpatos, que se erguiam
diante de nós como muralhas ciclópicas. O cocheiro, envolto em seu grande
manto, parecia fazer parte da própria noite. Tudo era tão estranho e silencioso
que comecei a sentir um pressentimento de estar entrando em um mundo que não
era mais dos vivos.”
À medida que lia cada trecho
do diário, cada carta, sentia-me como Jonathan Harker atravessando os Cárpatos:
a paisagem mudava diante de meus olhos e, ao mesmo tempo, a minha própria
percepção se transformava. As montanhas, com suas encostas misteriosas e vales
profundos, não eram apenas cenário; tornavam-se parte de um ritual de
iniciação, guiando-me pela cultura, pelos costumes e pelo folclore da
Transilvânia. Cada camponês supersticioso, cada aldeia banhada pela névoa, cada
lenda sussurrada através das páginas me arrastava para dentro de um mundo que
pulsava com histórias ancestrais, onde o medo e a fascinação se entrelaçavam.
Ler Drácula não era apenas
absorver palavras; era permitir que meu próprio poder de imaginação tomasse
forma. Cada frase, cada descrição, era um convite silencioso: eu não apenas
acompanhava Jonathan Harker pelos Cárpatos, eu os habitava. Eu sentia o frio
cortar a pele, a névoa subir pelos vales, os sussurros do folclore romeno e o
peso ancestral das montanhas.
A leitura, nesse sentido,
não me conduzia sozinha — era minha própria mente que erguia castelos, que
espalhava sombras, que encarnava a presença do Conde Transilvano. O livro
oferecia o mapa, e eu traçava os caminhos, respirava o ar, temia e desejava. Esse
é o verdadeiro poder da literatura: não o de impor imagens, mas o de liberar o
que já reside em nós, esperando apenas a centelha das palavras.
Houve outro momento, no
livro, que me marcou profundamente: o primeiro encontro de Jonathan Harker com
o próprio Conde Drácula. É uma passagem que condensa o terror e a fascinação,
como se cada gesto do vampiro estivesse carregado de uma força silenciosa capaz
de penetrar a alma do visitante.
Quando Harker chega ao
castelo, Drácula o recebe com uma cortesia quase ritual, conduzindo-o por
escadas sinuosas, corredores silenciosos e aposentos gelados. A primeira
impressão é de estranheza e hospitalidade ao mesmo tempo, como se cada gesto
escondesse uma intenção secreta: “Bem-vindo à minha casa! … Entre, o ar da
noite está frio, e você deve precisar comer e descansar.”
O Conde ajuda Harker com sua
bagagem e o leva pelos corredores sombrios, deixando claro que cada pedra, cada
porta do castelo tem seu próprio ritmo, sua própria história. É uma recepção
cortês, mas carregada de suspense, onde o frio da noite parece infiltrar-se nas
palavras. Deposi de instalado, eles descem para o jantar. Mas, aí, Harker,
revela a primeira fissura entre anfitrião e hóspede: Drácula não come com ele,
mantendo uma distância silenciosa que causa estranheza e tensão. “Sente-se e
jante como lhe aprouver … rogo que me desculpe … eu já jantei, e não sou de
‘supper’.” (supper = uma refeição leve à noite).
Harker observa que Drácula
já jantou, reforçando uma distância quase ritual entre eles. Enquanto isso, ele
próprio come sozinho — frango assado, queijo, salada e vinho Tokay — e nota
pequenos detalhes, como o cigarro que o Conde oferece, apenas para recusar em
seguida: uma cortesia enigmática, uma pista de que ali tudo funciona segundo
regras próprias.
Após a refeição, Harker
decide explorar o castelo. Encontra uma biblioteca com muitos livros em inglês,
mas logo percebe que não há servos, nenhum som humano além do uivar distante
dos lobos. Portas trancadas se multiplicam à sua frente, como barreiras silenciosas.
Ele sente a vastidão do lugar, a solidão e a sensação de ser um intruso:
“Portas, portas, portas por toda parte, e todas trancadas… O castelo é uma
verdadeira prisão, e eu sou um prisioneiro!”
É nesse clima de beleza
selvagem e silêncio opressivo que a presença de Drácula se faz sentir: cortês e
ao mesmo tempo inquietante, distante, mas profundamente invasiva, como se cada
gesto do anfitrião deixasse rastros de algo sobrenatural. A primeira noite é
marcada por essa tensão inicial, que combina recepção elegante e mistério
latente, preparando o terreno para o que está por vir.
Com o recolhimento, e a
volta ao aposento, ele percebe o toque sutil de uma mão, o olhar que brilha com
intenções indecifráveis, o mistério absoluto que se mantém mesmo sob a luz do
dia — tudo isso cria uma tensão quase física no leitor, uma sensação de proximidade
com algo que não deveria existir. É nesse instante que a narrativa deixa de ser
apenas relato e se torna experiência: sentimos o frio da pedra do castelo, o
perfume das sombras e a inquietação de Harker como se fossem nossos próprios
sentidos despertando para o sobrenatural.
“Diário de Jonathan
Harker
8 de maio de 1897.
Castelo do Conde Drácula.
Comecei a temer, enquanto
escrevia neste livro, que estivesse sendo demasiado prolixo; mas agora me
alegro de ter entrado em detalhes desde o início, pois há algo tão estranho
neste lugar — e em tudo o que nele habita — que não posso deixar de me sentir inquieto…
Pendurei meu espelho de barbear junto à janela e estava apenas começando a me
barbear, quando, de repente, senti uma mão no meu ombro e ouvi a voz do Conde
dizendo: ‘Bom dia.’ Mas não havia reflexo dele no espelho! … Seus olhos
brilharam com uma espécie de fúria demoníaca, e ele subitamente tentou agarrar
minha garganta.”
Esse encontro, registrado
por Harker, é carregado de tensão sobrenatural e simbolismo. É como se, naquele
instante, a própria realidade se rompesse: o Conde Drácula, presente e
invisível, tão próximo que pode tocar seu ombro — mas sem refletir no espelho,
como se não pertencesse ao mundo normal. Esse gesto é uma declaração: ele não é
um anfitrião comum, mas uma criatura que desafia as leis da natureza.
Quando seus olhos “brilham
com uma fúria demoníaca” diante do sangue, é como se despertasse algo primal,
uma sede ancestral e terrível. A mão que toca a garganta de Harker é tanto uma
ameaça física quanto um convite sombrio: ao mesmo tempo, poder e perigo se
entrelaçam. Há intimidade, mas também violência.
Para mim, esse momento
revela o poder dual de Drácula: ele seduz, fascina, mas também domina. Não é
apenas um aristocrata misterioso — é um ser cuja presença exige entrega e medo.
E para quem lê, esses
fragmentos são como um espelho quebrado: não vemos tudo de uma vez, mas somos
arrastados para a escuridão, justamente porque a imaginação corre solta,
preenchendo cada lacuna com nossos pensamentos mais íntimos.
Esse encontro inicial entre
Harker e o Conde é, para mim, o ápice da sedução gótica: é aí que o véu entre a
curiosidade e o horror se rasga, e começamos a vislumbrar quem Drácula
realmente é — não apenas nas palavras, mas no silêncio, na sombra e no reflexo
que falta.
Pequenos indícios de
prazeres proibidos, de encontros carregados de tensão e desejo, começavam a se
insinuar com a leitura, como se sob a majestade das montanhas e a serenidade do
luar existisse uma escuridão viva, pronta para se revelar.
Esse prenúncio se tornaria
evidente em um dos momentos mais perturbadores e fascinantes do livro: a
aparição das chamadas “prostitutas do demônio”, vampiras que misturam sedução e
perigo em cada gesto.
O impacto desse episódio é
múltiplo. Por um lado, senti o perigo físico — o toque, o olhar, os dentes
afiados — e a iminência de uma violência literal. Por outro, percebi a tensão
sexual quase hipnótica, que não se reduz ao horror: há um prazer perverso e
proibido, que o próprio Harker sente, e que eu, enquanto leitor fui compelido a
imaginar.
No episódio das chamadas “prostitutas do demônio”, é importante notar que não é Mina Harker quem fala diretamente, mas sim Van Helsing, que transcreve e comenta os eventos a partir de seu conhecimento e interpretação do diário de Mina.
“Diário de Mina Harker
6 de novembro 1897
Serei paciente, meu amigo.
Não é um inimigo comum com quem lidamos. Ai! Ai de nós que a querida senhora
Mina tenha de sofrer! Ele não é o próprio demônio, embora seja de sua linhagem;
mas, oh meu Deus! que ‘demônios do Inferno’ eram aquelas criaturas que
irromperam sobre nós pela garganta daquela criança? E estamos todos — como
estamos, e como haveremos de estar.”
Aqui, Van Helsing narra a aparição das três
vampiras no diário de Mina, reforçando o caráter sobrenatural e aterrador das
“Noivas de Drácula”, e preparando o leitor para o confronto entre fascínio e
medo.
Enquanto Van Helsing nos
alerta, através de sua narração do diário de Mina, para a presença demoníaca e
sexualmente carregada das vampiras, Jonathan Harker experimenta esse mesmo
terror em primeira pessoa. É ele quem presencia, no castelo, a aproximação dessas
criaturas, sentindo a tensão e o perigo de forma quase física: o toque suave e
estremecente dos lábios na garganta, a pressão firme dos dentes, os olhares
hipnóticos e sussurros sedutores.
Bram Stoker constrói essas
cenas com uma delicadeza cruel, mostrando que a atração e o terror caminham
lado a lado, e que o prazer não está dissociado do perigo.
Jonathan Harker — 15 de maio
1897
“Eu não estava sozinho. O quarto era o mesmo, mas de algum modo diferente. Embora tivesse fechado as venezianas, o luar entrava pelas frestas, e havia luz suficiente para ver. Eu podia ver seus rostos pálidos, olhos brilhantes e duros, dentes brancos, línguas vermelhas que tocavam os lábios. Senti em meu coração um desejo perverso e ardente de que me beijassem com aqueles lábios vermelhos. Não é bom registrar isto, para que Mina não leia e sofra, mas é a verdade. Elas sussurraram entre si e depois riram uma risada prateada e musical, mas amarga. A moça loura avançou e inclinou-se sobre mim. Senti o toque suave e estremecente de seus lábios na minha garganta, e a pressão firme de seus dentes arranhando minha pele. Fechei os olhos em êxtase lânguido e esperei — esperei com o coração a bater.”
Aqui, a tensão que Van Helsing descreve ganha corpo e intensidade nos olhos de Harker. O leitor sente a mistura de fascínio, medo e desejo que permeia o encontro: a ameaça física se entrelaça com a sedução sexual, e cada gesto das vampiras revela a duplicidade de sua natureza — ao mesmo tempo bela e monstruosa. Esse momento destaca o poder de Stoker em transformar uma cena de terror em experiência sensorial: não lemos apenas os acontecimentos, quase os vivemos, sentindo a respiração gelada do castelo, o perfume do perigo e o magnetismo perverso das criaturas.
Ao mesmo tempo, essas cenas
preparam o terreno para a intervenção de Drácula, que, como vimos, reivindica
Harker como seu, reforçando a hierarquia perversa do harém de vampiras e a
combinação de erotismo e controle absoluto que caracteriza sua presença. É
nesse ponto que a narrativa se torna mais do que relato: ela nos arrasta para o
mundo gótico e insólito que Stoker construiu, fazendo o sobrenatural palpitar
como se fosse real diante dos nossos sentidos.
Drácula interrompe as
vampiras
“A moça ajoelhou-se e
inclinou-se sobre mim, quase se deleitando. Havia nela uma voluptuosidade
deliberada, excitante e repulsiva, e ao arquear o pescoço chegou a lamber os
lábios como um animal. Nesse instante, o Conde abriu a porta e, com uma palavra
feroz, puxou-a para trás. Seus olhos faiscavam. “Como ousas tocá-lo? Este homem
pertence a mim!” Depois, voltando-se para as outras, disse: “Vamos! Vamos!
Serei vosso pai no devido tempo; mas ainda não. Ainda não! Vão, eu ordeno!”
Aqui, a citação não é apenas
uma descrição de ação: é um instante de tensão máxima, em que o terror e o
desejo se entrelaçam. O leitor sente a proximidade do perigo e, ao mesmo tempo,
a estranha sedução da cena, como se estivesse espiando um mundo onde as regras
humanas são subvertidas. Cada gesto do Conde, cada olhar das vampiras, cada
hesitação de Harker nos coloca dentro da narrativa, fazendo-nos experimentar a
mistura de medo, fascínio e perversidade que Stoker domina com precisão quase
ritualística.
Apesar de muitas outras
cenas se seguirem no romance, não me detenho nelas aqui. A intenção é apenas
dar um vislumbre do poder de Stoker em criar experiências que nos fazem
imaginar — quase sentir — cada toque, cada olhar, cada sombra. É nesse
entrelaçar de horror e sedução, de controle e prazer, que a narrativa alcança
seu efeito mais profundo: não apenas nos contar uma história, mas nos fazer
viver a intensidade do gótico que transcende o papel impresso.
O Monte Cárpatos e o Bolo
que Eleva Seu Nome
Após explorar a narrativa
epistolar de Bram Stoker em Drácula e as descrições vívidas dos Cárpatos nas
anotações de Jonathan Harker, percebo como a literatura gótica se alimenta de
geografia e folclore. Não é por acaso que Stoker escolheu os Cárpatos como
cenário do castelo do Conde — uma região de montanhas imponentes, florestas
densas e mitos antigos, perfeita para o sobrenatural.
A ligação entre o mundo
literário e o mundo real dos Cárpatos pode ser observada também em aspectos
culturais inesperados, como a gastronomia: é aqui que a cordilheira empresta
seu nome a um famoso bolo/torta polonês, mostrando como paisagens e tradições
se entrelaçam com a imaginação humana.
As montanhas dos Cárpatos
formam uma cordilheira de aproximadamente 1.500 quilômetros na Europa Central e
Leste Europeu, estendendo-se em arco do oeste ao leste, da República Tcheca à
Romênia. Entre elas, destacam-se os Tatras, na fronteira da Eslováquia com a
Polônia, um parque nacional com vários picos acima de 2.400 metros. Mais da
metade da cordilheira fica na Romênia, coberta por densas florestas de píceas,
lar de ursos-pardos, lobos e linces.
Historicamente, essas
montanhas carregam também uma rica mitologia. Na Transilvânia e arredores,
histórias sobre vampiros, espíritos e seres sobrenaturais eram transmitidas de
geração em geração. Lendas sobre bruxas, guardiões das montanhas e criaturas noturnas
permeavam o imaginário popular. Stoker, ao situar o castelo de Drácula nesse
cenário, aproveitou essas tradições para criar uma atmosfera que combina o
exótico, o misterioso e o assustador.
Essa mesma fusão entre
realidade e fantasia se reflete até em elementos aparentemente mundanos: o
relevo das montanhas inspirou não apenas descrições literárias, mas também
associações culturais, como o bolo que leva o nome dos Cárpatos. É uma
lembrança de que o imaginário humano — literário, geográfico e até gastronômico
— está profundamente interligado, e que, muitas vezes, o sobrenatural se
esconde nas pequenas conexões entre mundo e narrativa.
A Transilvânia ergue-se como
um coração selvagem encravado nos Cárpatos, onde a névoa se enrosca nos picos e
desce pelas florestas densas, envolvendo vilarejos esquecidos pelo tempo. Cada
vale estreito guarda o sussurro de séculos, e cada castelo de pedra parece
observar, silencioso, a passagem das gerações. É nesta terra que a realidade se
dobra sobre a lenda: onde a história de Vald, o Empalador, se mistura ao
imaginário coletivo, e onde as sombras de Drácula, figura literária que nasceu
da alma da região, caminham lado a lado com o vento que sopra das montanhas.
Vlad III da Valáquia,
conhecido como o Empalador, não foi apenas um príncipe de ferro; sua presença
era capaz de inspirar temor e respeito, transformando a crueldade em lenda
viva. Suas campanhas contra invasores otomanos, marcadas por punições horrendas,
deixaram memórias gravadas nas pedras e nos relatos dos aldeões. Com o tempo, a
figura de Vlad se fundiu ao mito do vampiro, criando uma aura de terror e
fascínio que atravessou fronteiras e desembocou nas páginas de Bram Stoker,
alimentando a imaginação coletiva do Ocidente.
Mas a Transilvânia vai além
da história e da literatura: é folclore pulsante. Nas florestas sombrias,
contam que espíritos da noite percorrem trilhas invisíveis; que bruxas dançam
sob a luz da lua cheia; que lobos e corvos atuam como mensageiros entre o mundo
dos vivos e o mundo dos mortos. Lendas de strigoi — almas inquietas que
retornam para assombrar os vivos — povoam casas e capelas de pedra, enquanto
amuletos e rituais de proteção sobrevivem de geração em geração, como se cada
aldeia guardasse um segredo antigo e perigoso.
A Transilvânia é, portanto,
um território de tensão e sedução, onde a beleza agreste da natureza convive
com uma sombra permanente de mistério. Cada torre, cada muralha de castelo,
cada cemitério abandonado carrega ecos de histórias que desafiam a razão e
convidam à imaginação. Caminhar por essas terras é percorrer uma ponte entre o
real e o fantástico, entre o concreto das montanhas e o etéreo das lendas. É
nesse cenário gótico e indomável que Drácula se solidifica como mito — um lugar
onde o sobrenatural parece tangível, quase capaz de tocar a pele de quem ousa
explorá-lo.
E assim, entre as florestas
densas, os cumes nevados dos Cárpatos e a memória de um príncipe que impunha
sua justiça com mão de ferro, a Transilvânia se revela não apenas como
território, mas como experiência sensorial e emocional: medo e fascínio entrelaçados,
beleza e crueldade coexistindo numa dança atemporal, enquanto o visitante
percebe o chamado silencioso das sombras, murmurando histórias antigas… e
sente, de maneira surpreendente, o eco dessas montanhas traduzido no Karpatka,
o bolo que transforma picos nevados em doçura palpável.
Ao atravessar os Cárpatos
poloneses, percebe-se a continuidade de um território mítico que, embora
distante das fortalezas da Transilvânia, compartilha a mesma aura de mistério e
reverência pela natureza indomável. A Polônia se insere nos Cárpatos como um
contraponto gelado e encantador, onde o clima rigoroso e as neves eternas
moldam picos que inspiram tanto contemplação quanto imaginação.
É nesse cenário que a
cultura polonesa encontrou nos relevos da cordilheira inspiração para
transformá-los em arte comestível. A massa ondulada do Karpatka, com suas
camadas de creme e plissados que recriam as silhuetas irregulares dos picos,
leva à mesa a sensação de caminhar pelos cumes nevados: cada fatia é um convite
para tocar, ver e saborear as montanhas, unindo memória, geografia e prazer.
Os Cárpatos poloneses,
assim, deixam de ser apenas montanhas: tornam-se território de experiências, de
histórias sussurradas e de mitos vivos, onde se sente a magnitude da natureza e
a magia das alturas. Nesse espaço, as lendas da Transilvânia, o frio da neblina
e os ecos dos contos de vampiros encontram um diálogo inesperado com a
rusticidade e a doçura do Karpatka, permitindo que o leitor-saboreador viva, em
cada mordida, o encontro entre geografia, mito e gastronomia.
KARPATKA: O BOLO/TORTA QUE TRANSFORMOU
AS MONTANHAS EM DOÇURA
O Karpatka (pronuncia-se
car-pat-kah) é muito mais que um bolo polonês popular; é uma experiência
sensorial que leva à mesa a majestade e a rusticidade dos Cárpatos. Composto
por duas camadas de massa choux — a mesma delicada massa usada em éclairs e bombas
de creme — e recheado com creme mousseline, o Karpatka conquista tanto o olhar
quanto o paladar. A superfície irregular, polvilhada com açúcar de confeiteiro,
evoca perfeitamente os cumes nevados das montanhas, tornando cada fatia uma
reprodução comestível da paisagem.
Mais do que uma simples
sobremesa, o Karpatka transforma o rústico em sublime. Ele nasceu inspirado na
Kremówka, o clássico “Bolo de Creme Papal” (Kremówka Papieska), originária de
Wadowice, na Polônia, que conquistou o jovem Karol Wojtyła — futuro Papa João
Paulo II. Conta-se que, após os exames escolares, ele devorava dezenas de
fatias com os amigos, experimentando o prazer da sobremesa sem qualquer
vestígio de arrependimento.
A Kremówka, originária de
Wadowice, já era apreciada pelo jovem Karol Wojtyła no início do século XX,
décadas antes de surgir o Karpatka, que só foi desenvolvido como versão robusta
do doce nos anos posteriores, inspirando-se tanto na tradição da Kremówka
quanto na aparência irregular das montanhas dos Cárpatos.
A Kremówka, feita com
delicadas camadas de massa folhada intercaladas por creme de confeiteiro e
polvilhada com açúcar, carrega consigo a memória da juventude do Papa e a
tradição de uma cidade que respira história a cada fatia. Décadas mais tarde,
inspirados por essa herança e pelas montanhas que atravessam a Polônia,
confeiteiros criaram o Karpatka: uma versão robusta, feita de massa choux
ondulada e creme generoso, cuja superfície irregular lembra os picos nevados
dos Cárpatos.
Enquanto a Kremówka evoca
doçura, nostalgia e simplicidade, o Karpatka propõe uma experiência tátil e
gustativa distinta — firmeza e cremosidade combinam-se como encostas
irregulares e vales nevados, transformando cada mordida em uma travessia
sensorial. Assim, a tradição se reinventa, mantendo viva a conexão entre
memória, território e sabor, unindo a história de Wadowice ao imaginário das
montanhas polonesas.
O Karpatka pode ser assado
em formato retangular, cortado em quadrados perfeitos, ou em formato redondo,
em fatias que convidam a dividir o prazer. Mais do que sabor, oferece uma
experiência emocional: cada camada de creme, cada ondulação da massa, cada nuvem
de açúcar de confeiteiro transporta quem degusta para o território das
montanhas, para o diálogo entre natureza e cultura, mito e cotidiano, frio das
alturas e calor da doçura.
O Karpatka, assim, não é
apenas um bolo: é geografia, história e poesia comestível, uma ponte que
transforma o imaginário em sabor, e as montanhas, em experiência viva e
palpável.
Há rumores de que a forma
atual do Karpatka tenha surgido por acidente, quando um confeiteiro uniu
inadvertidamente várias folhas de massa folhada. Para corrigir o problema,
cortou a massa ao meio e recheou com creme. Ao polvilhar açúcar de confeiteiro
sobre o topo, o resultado evocava imediatamente as colinas nevadas dos
Cárpatos, transformando um erro em uma assinatura visual e sensorial que
permanece até hoje.
Segundo livros didáticos de
gastronomia, o Karpatka pertence à família dos ciasta parzone (ptysiowe),
massas cozidas que formam a base de muitos doces tradicionais poloneses: Konarzewska,
M. Technologia gastronomiczna z towaroznawstwem: podręcznik do nauki zawodu
kucharz w technikum i szkole policealnej. T. 2. Warszawa: Wydawnictwa Szkolne i
Pedagogiczne, 2011, p. 116; e, Flis, K.; Procner, A. Technologia gastronomiczna
z towaroznawstwem: podręcznik dla technikum. Część 2. Warszawa: Wyd. XVIII.
O primeiro produto
pré-fabricado que facilitou a produção doméstica do Karpatka surgiu em 1986
pela Kujawskie Zakłady Koncentratów Spożywcze w Włocławek, atualmente conhecida
como Delecta SA. Em 1995, mesmo ano em que a internet se abriu ao público no Brasil,
a marca Karpatka foi registrada oficialmente no Escritório de Patentes da
Polônia. Um produto similar lançado em 1996 pela Dr. Oetker deu origem a uma
disputa judicial que se estendeu por 12 anos, sendo finalmente resolvida em
2011 a favor da Delecta SA.
Como o Bolo Karpatka é
Preparado
Para quem já tentou fazer
massa choux em casa, sabe que a técnica exige atenção. O segredo está em
preparar corretamente a massa e garantir a consistência ideal, para que o
resultado seja leve, aerado e firme. O recheio é um creme mousseline, feito com
creme de confeiteiro misturado à manteiga batida, garantindo maciez e
cremosidade.
A Karpatka tradicionalmente
tem duas camadas de massa choux, sendo a inferior coberta com geleia e recheio,
e a superior colocada por cima, polvilhada com açúcar de confeiteiro. Conforme
as referências gastronômicas, a camada inferior poderia ser massa quebrada, e a
superior, massa choux, mas a versão mais popular utiliza massa choux em ambas
as camadas.
O nome Karpatka reflete
diretamente a aparência: o relevo ondulado da massa choux polvilhada de açúcar
lembra os picos nevados dos Montes Cárpatos — Karpaty em polonês. Dizem, que
primeira menção do nome "karpatka" encontra-se em um livro didático
de 1972, publicado por estudantes de filologia polonesa, onde a palavra
designava biscoitos, mas não encontrei vestígios reais nem fonte confiáveis
sobre isso.
A popularidade da sobremesa
se consolidou entre as décadas de 1970 e 1980, e hoje existem misturas prontas
para prepará-la em toda a Polônia. Tradicionalmente, uma fatia generosa é
servida com café ou chá.
CONCLUSÃO – ENTRE SOMBRAS, MONTANHAS E
DOCE MISTÉRIO
Desde os primeiros momentos
em que cartas cruzavam continentes, transportando segredos e desejos, até a
explosão silenciosa da internet, capaz de atravessar fronteiras com um clique,
o mundo parece sempre buscar maneiras de entrelaçar histórias, culturas e
sabores. Cada linha escrita, cada página lida, cada gesto de memória tornou-se
um fio invisível que me conecta ao passado distante das cordilheiras e às
lembranças que elas carregam. É nesse fio delicado que os Cárpatos surgem, não
apenas como montanhas, mas como guardiões de mistérios, testemunhas de lendas e
palcos silenciosos de narrativas que desafiam o tempo.
Ao folhear as páginas
impressas de Drácula, senti a sombra do Conde pairando sobre vales nevados,
ouvi o eco de passos nas florestas densas, o sussurro de ventos que carregam
mitos antigos. Entre essas lendas, cada pico, cada vale e cada floresta se tornam
quase vivos: lar de lobos, linces e ursos-pardos, palco de assombrações e
encantamentos, onde o sobrenatural se insinua na vida cotidiana. As histórias
se entrelaçam com o ritmo das aldeias, onde tradições folclóricas preservam
pedaços da alma das montanhas e do imaginário coletivo.
E, surpreendentemente, é nesse mesmo território que a memória se transforma em sabor: o Karpatka, com sua massa ondulada e creme generoso, traduz as encostas nevadas em experiência sensorial, permitindo que o visitante-saboreador toque, ainda que brevemente, a essência das cordilheiras. Assim, os Cárpatos não são apenas geografia; são território de memórias, de resistência, de sonhos e de sabores que atravessam gerações, unindo o mito à vida cotidiana, a sombra à doçura, o passado ao presente, em uma dança silenciosa entre realidade e imaginação.
E, como se a própria geografia quisesse se traduzir em doçura, surge a Karpatka. Não é apenas um bolo: é território em forma de sobremesa, memória em cada camada de massa choux ondulada, irregular, que imita os picos nevados e os vales profundos dos Cárpatos. O creme mousseline que se esconde entre as ondulações é como a neblina que envolve os cumes — suave, inesperada, impossível de ignorar. Ao provar a Karpatka, sentimos não apenas açúcar e creme, mas o frio da montanha, o silêncio das florestas e a rusticidade transformada em arte pela tradição polonesa. Cada mordida é um pequeno portal que nos leva a caminhar pelas encostas geladas, ouvir o vento entre árvores antigas e imaginar os mistérios guardados pelas alturas.
Assim como os contos góticos
atravessam séculos, a Karpatka carrega sua própria história de lendas e acasos
criativos. Um confeiteiro distraído, reorganizando massas folhadas, deu origem
a uma sobremesa que, sem querer, recriava em açúcar e creme a grandiosidade dos
picos. Décadas depois, estudantes de filologia registrariam seu nome,
“karpatka”, e a marca se tornaria célebre, atravessando disputas judiciais e
fronteiras, mostrando que mesmo a doçura pode ser palco de drama humano.
Cartas, livros, internet,
lendas e bolo convergem em uma linha invisível que une imaginação, memória,
sabor e história. Não se trata apenas de comer: é sentir os Cárpatos em cada
fatia, tocar a neblina, ouvir os ventos antigos e experimentar o mistério que
percorre cada curva da massa e cada nuvem de creme. A Karpatka é convite para
atravessar o desconhecido, para transformar a sobremesa em experiência, a
memória em presença, o simples ato de provar em ritual.
E, como toda história que
preserva sua aura de mistério, a promessa permanece: a viagem não termina aqui.
Os Cárpatos esperam, escondidos entre camadas de massa e creme, prontos para
serem explorados em sua própria cozinha. Prepare-se para sentir o frio da neve,
o silêncio das florestas e o encanto das lendas — tudo em uma única mordida. Os
mistérios das montanhas, as sombras dos contos góticos e a doçura que
atravessou séculos e continentes estão prestes a se revelar… à sua mesa.
KARPATKA
Para a massa choux (suficiente para 2 camadas):
1 xícara (250 ml) de leite
1 tablete (113 g) de manteiga
1 xícara (150 g) de farinha de trigo
5 ovos (médios)
Para o creme do recheio:
3 xícaras (750 ml) de leite
10 colheres de sopa (130 g) de açúcar
refinado
1 colher de sopa (1 sachê, 16 g) de
açúcar de baunilha, pode substituir por 1 fava de baunilha (sementes) ou 3
colheres de chá de extrato de baunilha
1 ovo
4 gemas
4 colheres de sopa (40 g) de fécula de
batata
2 a 2,5 colheres de sopa (20 g) de
farinha de trigo
350 g de manteiga, em temperatura
ambiente (não pode ser margarina)
2 colheres de sopa (25 g) de açúcar
refinado
Para polvilhar: Açúcar de confeiteiro
Preparo: Para a massa choux – Coloque o leite e a manteiga em uma panela. Aqueça em fogo médio-baixo, deixando a manteiga derreter no leite. Leve a mistura para ferver. Adicione 1 xícara de farinha e reduza o fogo. Mexa com um batedor de arame por alguns instantes até formar uma massa espessa e homogênea. Ela deve se soltar das laterais da panela com relativa facilidade. Retire do fogo e deixe esfriar. Depois de completamente fria, incorpore os ovos, um a um, misturando bem após cada adição. A massa deve ficar lisa, um pouco pegajosa e sem grumos. Divida a massa em duas partes. Use uma forma retangular grande (idealmente 23 x 33cm, mas pode preparar numa forma redonda média). Unte-a generosamente com manteiga e polvilhe com farinha. Coloque uma das partes da massa na forma e alise a superfície com uma faca de manteiga ou espátula. Se a massa estiver pegajosa, não se preocupe, isso é normal. Asse a 200 °C por 25 a 30 minutos, ou até que o bolo fique levemente dourado. Não abra o forno enquanto assa! Retire para esfriar numa gradinha e repita com outra porção da massa. Deixe esfriar completamente. Prepare o Creme – coloque para ferver, duas xícaras de leite (meio litro) com açúcar refinado e a baunilha que você vai usar. Numa tigela grande misture muito bem, a xícara restante de leite frio (250 ml) e adicione um ovo, 4 gemas, fécula de batata e farinha de trigo bem, se preferir passe por uma peneira para garantir que não ficou resíduos. Depois, acrescente o leite fervente aos poucos nessa mistura método conteúdo pra panela e continue mexendo até engrossar, depois que ferver, cozinhe bem por uns 5 minutos, mexendo sempre, até formar um creme homogêneo. Quando estiver satisfeito com a textura, retire do fogo. Cubra com filme plástico e deixe esfriar completamente. Na tigela da batedeira, coloque as 350 g de manteiga e duas colheres de sopa de açúcar refinado na tigela da batedeira. Bata até formar uma massa de manteiga leve e fofa (você pode fazer tudo na mão, mas vai demorar um pouco mais). Aos poucos, comece a adicionar o creme, algumas colheradas de cada vez, batendo continuamente. Depois de todo o creme misturado como a mistura de manteiga estiver bem incorporado, estará pronto. Montagem: Coloque uma camada de massa choux assada em um prato de servir para rechear com o creme e depois cobrir com a outra massa e levar para gelar por pelo menos duas horas. Ou, como alternativa, você pode forrar a mesma forma que assou o bolo com filme plástico, colocar a primeira camada de massa, rechear cobrir com outra camada de massa e levar para a geladeira por pelo menos duas pro recheio firmar, e só na hora de servir você desenforma, retira o filme plástico e coloca no prato de servir. E só então, polvilhe generosamente com açúcar de confeiteiro. Corte em porções com uma faca bem afiada.





















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