domingo, 23 de novembro de 2025

RAINHA DE SABÁ, O ENIGMA SERVIDO EM FATIAS

 

Eu era ainda uma criança quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado que eu conhecia melhor: os gibis.

Essa é a delícia de hoje: o bolo rainha de Sabá, mas é preciso um pouco de história até chegar nele...

Eu era ainda uma criança quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado que eu conhecia melhor: os gibis.

Antes de prosseguir, preciso fazer um adendo — talvez vocês, leitoras e leitores, não saibam — mas a própria palavra “gibi” já carregava em si um sopro de mistério, um aroma de curiosidade. Nasceu muito antes de eu existir. Em 1939, a Editora Globo lançou uma revista em quadrinhos com esse nome exato: Gibi.

Na gíria da época, “gibi” era termo para menino negro, para o moleque das ruas — com conotações racistas, infelizmente comuns naquele tempo. Mas o sucesso da revista foi tão grande, tão encantador, que transformou a conotação do termo, apagando o sentido pejorativo original. Aos poucos, “gibi” deixou de ser sinônimo de desprezo e passou a significar travessura, curiosidade, espírito inquieto.

Naquela época, eu não sabia disso. Aprendi muito tempo depois, entre leituras de quadrinhos e outros mundos que minha curiosidade me arrastava a explorar. Foi assim que descobri que a palavra gibi vinha do quimbundo ngibi, sussurrada no Brasil desde o século XIX, e trazia consigo o eco de outro continente, a África — a mesma terra que, séculos antes, dera origem à rainha lendária que eu pressentira em meus olhos de criança.

A revista se espalhou com uma rapidez quase mágica, conquistando crianças e adultos, ocupando bancas e invadindo imaginações. Como acontece com tudo que cresce além de si, seu nome escapou das capas e passou a nomear um universo inteiro.

O destino das palavras, às vezes, é quase mágico: transcender a si mesmas, escapar das limitações do que originalmente significavam, assumir novas vidas. Assim, o “gibi” seguiu o caminho de outras criaturas linguísticas que, como ele, ganharam asas e se tornaram universais — Xerox, que deixou de ser apenas marca e se transformou em fotocópia; Gilete, que se libertou para virar sinônimo de lâmina; Corn Flakes, que atravessou o mundo para nomear todo cereal matinal de flocos de milho; Chiclets, que se espalhou pelos bolsos e mochilas como qualquer goma de mascar; Maizena, que passou a encarnar o próprio amido.

E assim, com o tempo e a persistência encantadora do cotidiano, qualquer revista em quadrinhos, fosse de onde viesse, recebeu o apelido carinhoso e definitivo: gibi — um pequeno feitiço linguístico, capaz de transformar uma palavra em universo.

Em resumo: uma palavra africana atravessou séculos, ganhou nova casa, transformou-se no menino travesso da gíria, tornou-se revista, e depois, como um encantamento cotidiano, passou a nomear todas as histórias desenhadas em quadrinhos que povoaram minha infância.

Naqueles anos, devorava sem trégua as aventuras da Turma da Mônica e da Disney. Meu tio Mário, irmão mais velho da minha mãe, mantinha assinaturas da revista Veja, que de vez em quando enviava, de brinde, revistas infantis. Mas ele também tinha assinaturas próprias de revistas para crianças; não sei se existiam antes do nascimento dos meus primos, seus filhos, mas o fato é que pilhas coloridas chegavam à casa como pequenos tesouros enviados pelo correio, sempre pontuais, sempre encantadas, como se soubessem exatamente onde pousar.

Foi na casa do tio Mário que encontrei um livro da Disney diferente de tudo que eu já conhecera. Estranho, porque não estava junto das revistinhas empilhadas na estante do quarto dos meus primos. Estava escondido numa gaveta da cristaleira — lembro que me pediram para pegar algo em um desses móveis antigos, cheios de gavetas, que ficava na sala de jantar, uma mistura de aparador e cristaleira. Fui atrás do objeto solicitado, abri a gaveta, encontrei o que procurava... e, no mesmo instante, o destino me apresentou outro tesouro: aquele livro.

Levei-o comigo, fascinado. Foi algo tão inesperado, tão arrebatador, que até hoje não consigo me lembrar do que fui buscar naquela gaveta; só me recordo do livro, que parecia ter me escolhido primeiro, como se soubesse que eu precisava encontrá-lo antes de qualquer outra coisa.

Era estranho e incomum: além das histórias curtas, mostrava os personagens clássicos da Disney vestidos como figuras históricas — e, para meu espanto, trazia receitas. Na verdade, era um livro de cozinha. Pertencia à minha tia Cida, esposa do tio Mário. Encantei-me imediatamente.

Foleando o livro, perdido entre as cores e as formas, eu me deixava levar pelo encanto das páginas. Os personagens da Disney, como atores de uma peça fantástica, encenavam cenas históricas com graça e irreverência, e cada ilustração parecia sussurrar histórias por si mesma. Havia comidas, receitas detalhadas, cada passo explicado com a paciência de quem deseja ensinar não apenas a cozinhar, mas a sentir, a tocar, a provar com os olhos antes de experimentar.

E então, parei numa página especial, uma página que ainda hoje pulsa em minha memória: o Pudim de Chocolate e Abacaxi da Rainha de Sabá.

Na ilustração, Margarida — a eterna pata elegante, namorada do Pato Donald — encarnava a Rainha de Sabá. Altiva, envolta em tecidos que pareciam fluídos, adornada com joias que reluziam como pequenas constelações, ela não comandava apenas o palácio, mas parecia dominar o próprio tempo.

Patinhos fantasiados, que eu supunha serem os sobrinhos do Pato Donald, esforçavam-se sob o peso de um pudim gigantesco, quase impossível, que carregavam atrapalhadamente. Vestiam-se como pequenos egípcios — ou, ao menos, era assim que minha infância imaginava toda a África, confundindo continentes e eras, misturando história e fantasia em uma só imagem luminosa.

E, no topo do pudim, erguia-se um abacaxi como um cetro comestível, coroando o monumento doce, imponente e encantador. Aquela visão — tão absurda quanto majestosa, tão impossível quanto real no meu imaginário — jamais se apagou da minha memória. Cada detalhe permanecia, gravado como se o livro tivesse sussurrado para minha alma de criança: isso é magia, e a magia é para sempre.

Aquilo me arrebatou.

Talvez porque foi a primeira vez que me vi questionando uma receita: como poderia alguém imaginar chocolate e abacaxi juntos? Como aquilo poderia ser real, harmonioso, quase mágico? A imagem se gravou em mim como um ícone indecifrável, uma lembrança que se recusava a se apagar.

Anos depois, tentei reencontrar o livro. Vasculhei catálogos, sebos, internet — tudo. Sabia que nos anos 1980 e 1990 a Disney no Brasil era publicada pela Editora Abril, e ainda assim, nada. Procurei até edições em inglês; encontrei uma de 1975, Mickey nas Cozinhas do Mundo, mas no índice não havia sinal do bendito pudim de chocolate e abacaxi da Rainha de Sabá.

E, durante essa busca, outras perguntas começaram a surgir, inquietantes: como poderia a Rainha de Sabá, que viveu antes de Cristo, ter provado chocolate e abacaxi — frutos descobertos séculos depois? Mas logo compreendi: a publicação não buscava fidelidade histórica; buscava abrir portas à imaginação, convidar crianças a adentrar a cozinha de mãos dadas com seus pais.

Ainda assim, o pudim jamais abandonou minha mente. Queria encontrar aquele livro. Queria reencontrar o mistério.

E, enquanto procurava, descobri imagens do tal pudim carregado pelos patinhos, encontrei algo parecido, em imagens antigas de sobremesas vitorianas. Um creme de chocolate montado em moldes antigos, ornado por relevos delicados, idêntico ao pudim da Rainha de Sabá — faltavam apenas os enfeites laterais e o abacaxi coroando o topo, como uma joia comestível.

 Essa era uma sobremesa vitoriana que tinha a aparência desnuda do pudim de chocolate com abacaxi...

Foi por causa daquele pudim impossível que, mais tarde, senti a necessidade de conhecer a verdadeira mulher por trás do mito. Quem era essa Rainha, tão bonita, tão rica, tão famosa — tão poderosa que, na minha imaginação de criança, já degustava chocolate e abacaxi antes que o mundo sequer sonhasse com eles?

Descobri uma mulher envolta em mitos: alguns majestosos, outros hilários, até desrespeitosos — como a lenda de que teria pés de cabra – animal que alguns ligavam ao satanismo. Talvez invenções de adversários políticos; talvez fruto do medo ancestral de que ela fosse um demônio sedutor.

Quanto mais eu lia, mais me perdia e me encontrava naquela figura: misteriosa, lendária, quase indomável, como se cada página sussurrasse segredos que só minha imaginação podia compreender.

E, ironicamente — ou talvez com a precisão poética do destino — anos depois, seu nome acabaria coroando outra delícia, um bolo de chocolate, daqueles que se tornam memória e prazer, um dos que mais amo na vida, como se o próprio passado tivesse decidido que a Rainha de Sabá merecia perpetuar sua majestade em sabor e em lembrança.

A RAINHA DE SABÁ ENTRE O TEMPO E O MISTÉRIO

Não em voz alta — jamais com a urgência de um grito — mas com a atenção suspensa, como se o tempo respirasse entre páginas antigas, senti a história se desprender de uma folha amarelada e flutuar pelo ar, leve, quase imperceptível. Um sussurro que carregava o crepúsculo, tocando ainda a toalha posta sobre a mesa, onde a luz se despedia em faixas de ouro queimado.

 Aqui está a representação da Rainha de Sabá feita por um artista. A imagem vem do manuscrito medieval Bellifortis, de Conrad Kyeser, e data de cerca de 1405.

A Rainha de Sabá. Um nome que paira, quase inalcançável, envolto em especiarias e ouro, como canela que se queima lentamente no ar quente, ou âmbar líquido derramado em silêncio. Há quem a chame de lenda, como se a memória de uma mulher assim pudesse ser reduzida a mito. Há outros que juram tê-la visto cruzando Jerusalém, deixando reis de joelhos, antes que o último gole de vinho tocasse a boca.

O que restou, afinal? Não são conquistas, não são tronos. É aquilo que persiste invisível e insistente: o gosto que ficou, o gesto que escapou, o perfume que ainda ronda os lugares onde passou. Séculos depois, ainda se manifesta, de formas inesperadas — nos sabores, nas receitas, nos aromas que atravessam o tempo. Como um bolo que não guarda apenas farinha e açúcar, mas a sombra e o eco de sua passagem.

Ela não se desvaneceu. Transformou-se em memória que se mastiga, que se sente na pele, na boca, nos olhos que procuram o brilho de ouro antigo, no aroma que se derrama como promessa.

No cerne de eras apagadas, ergue-se a Rainha de Sabá como um lampejo de ouro atravessando a neblina do tempo, cintilando com a suavidade de uma promessa esquecida. Mulher de olhos que parecem enxergar além do horizonte, cujo raciocínio desliza entre a couraça da diplomacia e o fogo indomável da sedução, revelando segredos que apenas a lua poderia compreender.

Ela vem de um reino onde o vento carrega incenso e mirra, e entoa murmúrios secretos às palmeiras, histórias que escorrem entre folhas e se infiltram nas pedras antigas. Cada gesto seu é calculado, uma dança entre poder e curiosidade, entre luz e sombra, como se soubesse exatamente onde o mundo hesita.

Nunca se sabe ao certo onde começa sua história — se nos jardins suspensos sobre o Mar Vermelho, onde flores raras curvam-se à sua passagem, ou na boca entreaberta de um ancião, que jura tê-la visto descer de um tapete de ouro puxado por leopardos de olhar lento e silencioso. Há cantos do mundo onde ainda se murmura que sua pele reluzia como bronze molhado sob a lua; em outros, que escondia pés de cabra sob túnicas de linho perfumado de incenso.

Ela habita o espaço entre mito e carne, entre sombra e brilho, como se a própria história respirasse através dela. Cada rumor, cada lenda, cada aroma que paira no ar parece carregar um fragmento dela — um fragmento que recusa desaparecer, mesmo quando os séculos tentam apagar o seu rastro.

Ainda há quem dissesse que ela viajava num tapete tecido com sombra e aromas de mirra e âmbar, guiada por estrelas e visões. Que poderia ler nos olhos dos camelos a cadência dos caminhos por vir; e que sua coroa era feita de alvorada e escrita invisível.

Em Belkiss, Eugénio de Castro evoca essa majestade simbólica, como se ela surgisse não para ser vista, mas para ser pressentida, reverberando entre o perfume do louro e o eco do mistério.  Um enigma que se devolvia apenas no silêncio do olhar. Como um bolo que parece rígido na crosta, mas guarda um centro tenro e preservado — o convite ao segredo, ao desejo, à lembrança.

Sempre foi assim com mulheres maiores que os limites dos mapas: não se admite que elas tenham apenas nascido. Precisam ter sido moldadas por deuses ou por delírios, como se carregassem em suas veias a essência de tempestades ancestrais, ou o sussurro silencioso de eras esquecidas. Elas não pertencem ao comum, ao mundano — são enigmas ambulantes, figuras que desafiam a lógica dos homens e a linearidade do tempo.

É como se cada gesto seu fosse uma inscrição em um livro proibido, cada olhar um portal para segredos que o mundo tenta esconder sob o véu do silêncio. São sombras que caminham sob a luz, presenças que se sentem antes mesmo de serem vistas, e cuja existência desafia a razão dos mapas, das fronteiras, das histórias contadas e repetidas.

Essas mulheres — tão vastas em sua aura, tão densas em sua essência — não nascem, transcendem. São a encarnação viva dos desejos não confessados, das paixões mais obscuras e dos mistérios que o tempo se recusou a revelar. E é assim que permanecem: eternas, inexplicáveis, soberanas do próprio mistério que as cerca.

Mas havia algo mais em Sabá — Makeda, Balqis, ou qualquer que fosse seu nome real — que nem os mais céticos ousavam negar: sua inteligência era simultaneamente corda de seda e lâmina de aço, uma força que se equilibrava entre a delicadeza e o corte preciso. Mulher capaz de atravessar desertos inteiros apenas para encontrar Salomão, o rei de Jerusalém, não para se curvar diante de sua fama, mas para testá-lo, para medir a substância por trás do mito.

O Rei Salomão e a Rainha de Sabá. Pintura de Giovanni Demin, 1824. 

Sabá não era peregrina em busca de respostas fáceis, nem rainha enfeitiçada pelo brilho alheio de um trono que não era seu. Ela era tempestade e enigma, um furacão contido em vestes de linho e ouro, dona de um conhecimento profundo, um código invisível que se revelava em palavras meticulosamente escolhidas, em perguntas afiadas como lâminas e em silêncios que ressoavam com mais força do que qualquer proclamação.

Cada passo que dava parecia calcular o ritmo do mundo, cada gesto era uma declaração velada de poder que se insinuava sem anunciar sua presença. Ao sentar-se diante do rei, Sabá não buscava sua aprovação — buscava sua verdade, a vulnerabilidade oculta sob a arrogância, a frágil invencibilidade de um homem que se julgava o mais sábio entre os mortais. Ela desafiava não apenas sua sabedoria, mas o próprio conceito de autoridade, de destino, de história contada pelos vencedores.

E enquanto os servos se afastavam em silêncio, como se pressentissem a eletricidade que pulsava entre aqueles dois seres, Sabá permanecia imóvel, como uma esfinge viva, seu olhar atravessando não apenas o rei, mas o tempo, as lendas e os ecos de todos os que tentariam decifrar sua presença.

Ela era um mistério de luz e sombra, uma lenda que escapava das mãos de quem tentava aprisioná-la em histórias. A presença dela não apenas reconfigurava o espaço, mas dobrava o tempo, fazendo com que aquele encontro — mesmo que breve — reverberasse séculos além, como uma inscrição gravada em pedra viva.

E enquanto os cronistas e poetas tentavam eternizá-la em versos e mitos, Sabá continuava além deles, uma força invisível que não se entregava à memória, mas que, silenciosamente, escrevia seu próprio legado nas frestas do mundo.

Até o rei Salomão, que estava acostumado a súditos, oráculos, moedas de ouro e mulheres que se curvavam ao seu olhar, se rendeu totalmente aos encantos dele. Mas Sabá entrou com os olhos retos, a boca firme, os ombros imóveis — como se carregasse mil anos de histórias e desertos nas vértebras. E ele soube: ou a conquistaria ou se perderia para sempre no eco do riso dela.

“Ela veio para prová-lo com enigmas” — dizem as Escrituras, como quem sussurra o prenúncio de algo mais profundo do que uma simples visita. Nos antigos livros de reis e crônicas, está registrado que a Rainha de Sabá atravessou vastidões de areia e silêncio não apenas para saudar Salomão, mas para desafiá-lo — não com armas ou exércitos, mas com o fino fio da inteligência, com enigmas que eram tão antigos quanto o mundo e tão perigosos quanto o desejo.

Essa passagem, gravada nas páginas de 1 Reis 10:1 e 2 Crônicas 9:1, ecoa ainda hoje como uma das mais sutilmente provocadoras da tradição bíblica — e sua sombra se estende também pelo Alcorão, onde a rainha — ali chamada Bilkis — surge não como súdita, mas como espelho de um profeta, num diálogo onde fé, poder e sabedoria se entrelaçam como perfumes raros num salão selado.

Não foi, portanto, uma mulher comum que se apresentou diante do rei. Foi um enigma em forma de presença. Um desafio envolto em ouro, mirra e silêncios. A prova viva de que o verdadeiro poder, muitas vezes, chega sob o disfarce da curiosidade.

“Ela veio para prová-lo com enigmas” — e talvez nunca mais, em toda a história, um eufemismo tenha sido tão carnal.

Porque os enigmas de Sabá não se limitavam à mente. Eram labirintos de desejo, de olhar e palavra, de silêncio e movimento — um jogo sutil onde a lógica se dissolvia na pele e no ar, onde cada gesto podia ser ao mesmo tempo promessa e armadilha.

Ela desafiava Salomão em cada encontro, como se fosse um duelo velado, uma dança de intelecto e vontade, onde a vitória não pertencia a quem respondia primeiro, mas àquele que soubesse seduzir o mistério e deixar o outro perdido em sua própria dúvida.

Os relatos sussurram que Sabá não apenas trouxe presentes de ouro e especiarias, mas também um presente mais perigoso — uma presença que incendiava a corte e enredava o rei em um jogo onde o poder e a paixão se confundiam.

E não era apenas a força de sua beleza ou a precisão de sua mente que encantava, mas a complexidade com que entrelaçava ambos. Sabá era uma tempestade que se permitia ser calma, um fogo que se escondia sob a superfície, um enigma que não se revelava por inteiro, mas se insinuava nas sombras da alma.

Dizem que o rei, sábio e inabalável diante do mundo, encontrou nela um espelho inquietante — alguém que desafiava seus limites e o fazia sentir, pela primeira vez, o peso suave e ao mesmo tempo cruel do desconhecido.

Assim, Sabá não veio apenas para testar a sabedoria de um rei, mas para desafiar o próprio conceito de domínio, reescrevendo, em cada encontro, o que significava poder e rendição.

Durante dias, trocaram enigmas e versos, temperados com vinho, tâmaras e a incerteza do próximo passo. A tensão era tamanha que os escribas esqueceram de registrar as respostas: só se sabe que ela saiu de lá com um filho e ele, com o coração desfeito.

Mas Salomão, rei que era, jamais choraria em praça pública. E Sabá, rainha que era, não ficaria para consolar um homem — ainda que o amasse. Porque se há um drama eterno que o tempo não apaga, é este: o amor entre iguais que não se permite florescer.

Em noites sem nome, talvez ela tenha olhado para o céu, deitada em algum terraço alto, e pensado: "E se eu tivesse ficado? Mas rainhas não ficam. Elas partem. E reis — mesmo os mais sábios — não correm atrás. Eles escrevem provérbios, constroem templos, deixam o coração entre as pedras.

Sabá voltou ao seu reino. Grávida. Dizem que levando a Arca da Aliança. Dizem que nunca mais amou. E o mundo seguiu, desmemoriado e injusto com ela — como sempre é com mulheres que não pedem licença ao desejo, nem ao destino.

E enquanto o tempo lavava cidades e desertos, Sabá carregava consigo não apenas memórias de reis e templos, mas também o gosto de aromas que atravessariam séculos — mirra, canela, especiarias exóticas que tocavam a língua como notas de música distante. Sua presença deixava rastros que não se contavam em histórias, mas em sabores que insistiam em sobreviver, em suspirar por mãos que soubessem transformá-los em algo tangível. Mesmo sem chocolate ou frutos das Américas, cada aroma e cada tempero parecia conter um segredo antigo, uma promessa de luxo e deleite que atravessava o tempo.

Nos interstícios entre lenda e memória, entre pergaminhos amarelados e murmúrios de vento, a rainha de Sabá se tornava também alquimista: convertia a experiência do mundo — perfumes, cores, texturas, calor da cozinha real — em pequenas maravilhas que resistiam à ruína do tempo. Era uma rainha que podia governar o silêncio, mas também transformar o cotidiano em ritual, e a comida em uma narrativa de poder e desejo.

E assim, cada gesto seu, cada segredo guardado nas especiarias do Oriente, parecia implorar por continuidade. Não apenas nas histórias que homens e mulheres contariam, mas naquilo que os sentidos retêm: o aroma da coragem, da audácia, do prazer que se permite existir mesmo diante da eternidade da história. Porque algumas rainhas — assim como certos bolos — não podem ser apenas lembradas: precisam ser saboreadas com atenção, degustada na memória e no tempo, como se cada fragmento fosse um fragmento de mundo que sobrevive.

SABÁ EM FATIAS: A EPIFANIA DE JULIA CHILD NA FORMA DE BOLO DE CHOCOLATE

A rainha de Sabá não é apenas uma lenda esculpida em ouro e histórias antigas — ela é também um sabor, uma presença que se insinua nos sentidos, uma essência que se descortina lentamente, camada por camada, como a mais intricada das poesias, onde cada nota de especiaria, sussurra segredos de reis e desertos longínquos. Há nela algo que não se memoriza apenas com a mente, mas que se prova na pele, no paladar, no ar que se respira com atenção.

E então, permita-me conduzir essa metamorfose: da rainha que caminhava entre palácios e pergaminhos, à rainha que reina entre tigelas e fouets, onde a alquimia do chocolate e das especiarias se torna cerimônia.


Julia Child, cozinheira e apresentadora de TV americana, não era apenas uma mulher que cozinhava — era uma mulher que se entregava por inteiro ao rito da cozinha, com corpo e espírito imersos no amor pelos ingredientes, pelos gestos, pelos aromas que dançam no ar. Sua devoção era generosa, quase magnética, capaz de transformar o ato de preparar uma receita em um verdadeiro tributo à história e ao prazer.

Ela nos legou algo digno de coroar qualquer trono doce: o Bolo Rainha de Sabá — não apenas um bolo, mas uma epifania de chocolate profundo, especiarias que sussurram histórias antigas, e uma sofisticação que se move sem pressa, deixando que cada camada se revele no tempo certo. Cada mordida é reverência, memória e celebração de um poder feminino que atravessa séculos, que carrega em si a majestade de uma rainha que escolheu seu próprio caminho.

Há registros dela preparando este bolo (veja AQUI), e até hoje, ao ver Julia mover-se na cozinha, percebe-se que cada gesto era ritual e poesia, como se o chocolate e as especiarias se dobrassem diante de sua presença, obedecendo à sua vontade e à cadência de sua paixão. Ela não apenas ensinava receitas: ensinava respeito pelo tempo, pelo sabor, pela memória — ensinava a transformar alimento em experiência, em memória viva, em celebração silenciosa do que é essencial e eterno.

O Bolo Rainha de Sabá, assim, torna-se mais do que uma sobremesa: é um elo entre séculos, entre a Rainha lendária e quem se permite sentir, saborear e celebrar o poder feminino que não se curva, que resiste, que se manifesta em cada aroma e em cada pedaço que se leva à boca. Julia Child nos entregou isso como quem entrega um segredo precioso, envolto em chocolate, especiarias e reverência.

Às vezes a elegância reside na opulência do sabor — e este bolo é mais que sobremesa: é celebração em cada fatia.

Assim como a rainha atravessou desertos e desafiou reis, seu bolo carrega em si a mesma promessa de exotismo e poder silencioso. Não é apenas uma sobremesa; é uma viagem delicada e envolvente aos territórios do paladar, onde o doce se entrelaça com especiarias distantes, e a textura seduz como o olhar de uma mulher que conhece seus próprios mistérios e os guarda com graça absoluta.

O Bolo Rainha de Sabá é, em sua elegância, um convite a desvendar segredos — um jogo sutil entre o amargo e o suave, o intenso e o etéreo. Cada mordida é um diálogo: o cacau profundo conversa com notas exóticas, como as histórias que rodeiam sua musa, que jamais se entregava por completo e sempre deixava, no ar, o rastro de um fascínio impossível de apagar.


Ao saborear esta criação, não se trata apenas de alimentar o corpo, mas de nutrir a alma com um fragmento do enigma que foi, e ainda é, a Rainha de Sabá — símbolo de força, inteligência e sedução que transcende séculos, sobrevivendo no gesto, no aroma, no sabor.

Assim, o bolo deixa de ser apenas receita: torna-se celebração da mulher que desafia definições simples, que comanda silenciosamente sua própria história e nos convida a provar, ainda que por um instante, da grandiosidade de seu espírito em cada mordida.

E se alguém perguntar por que este bolo carrega o nome de uma rainha esquecida, sorria. Diga que é porque ela ainda vive — no mito que se recusa a desaparecer, na paixão interrompida que resiste, no aroma de chocolate que sobe da forma como uma lembrança que se recusa a ser apenas lembrança. Diga que ela foi uma mulher que poderia ter escolhido o amor, mas escolheu guardá-lo para sempre, como quem preserva um segredo precioso.

E isso, às vezes, é mais eterno que qualquer gesto entregue ou palavra pronunciada.

Hoje, em tardes silenciosas, talvez se perceba sua presença nas cozinhas onde se prepara um bolo denso, escuro, sutilmente perfumado de chocolate e especiarias, onde cada mexida é um ritual, cada suspiro do forno uma reverência à memória.

Se este bolo tem gosto de algo, é do que sentimos ao lembrar dela: da força silenciosa que atravessa séculos, da inteligência que não se curva, da beleza que desafia o tempo e o espaço. É o sabor de um mistério que não se entrega, do desejo contido em um gesto, do poder contido em um olhar que conhece todos os segredos do mundo.

Cada pedaço é memória e celebração — um fragmento da rainha que escolheu seu próprio caminho, que atravessou desertos e reis, que guardou o amor como quem guarda ouro e incenso. No aroma que sobe da forma, no calor que envolve a cozinha, no sussurro do chocolate e das especiarias, a rainha de Sabá respira.

Para mim, a Rainha de Sabá não é apenas história. Não é apenas mito. Ela é vento que atravessa desertos, luz que cintila sobre ouro antigo, aroma que persiste nas cozinhas silenciosas do tempo. Ela é presença — intensa, sutil, impossível de esquecer — uma epifania que se prova, se saboreia e se sente.

Ela vive na infância daquele menino que pressentia mistérios nos gibis; nos olhos que encontram magia em livros escondidos; no encantamento de um pudim impossível que desafiava a lógica e a imaginação; na curiosidade que o fez buscar o passado como quem busca um segredo guardado. Ela vive nas páginas que não se desgastam, nos aromas que atravessam séculos, nas especiarias que sussurram histórias de reis, desertos e mulheres que não se dobram.

Ela vive no gesto generoso de Julia Child, na alquimia de um bolo que transforma chocolate em memória, em celebração, em ritual. Cada fatia do Bolo Rainha de Sabá é um portal: o amargo do cacau, o perfume das especiarias, a textura que se desmancha na boca — tudo fala de um poder silencioso, de uma inteligência que desafia o tempo, de um desejo que não se entrega, mas se preserva com majestade.

Cada pedaço é memória, cada aroma é história, cada sabor é enigma. A Rainha de Sabá não se foi. Ela se espalhou pelo mundo em pequenas maravilhas — nos olhos de quem observa, no paladar de quem prova, na reverência silenciosa de quem entende que certos seres não se apagam. Eles se transformam em eternidade.

Enquanto houver alguém que feche os olhos diante de um bolo, que respire seu perfume e deixe o chocolate derreter lentamente na língua, a Rainha de Sabá continuará viva. Não apenas em tronos ou pergaminhos, mas nos sentidos que guardam seu mistério, na memória que recusa esquecê-la, na força de uma presença que atravessa séculos sem pedir licença. Ela é poder, inteligência, desejo e magia — e, acima de tudo, é indomável. Sempre foi, sempre será. 

Bolo Rainha de Sabá

[Reine de Saba avec Glaçage au Chocolat, ou Bolo de Amêndoas e Chocolate, da Julia Child]

Para o bolo:

120g de chocolate meio-amargo, com 50% de cacau;

2 colheres de sopa de rum, ou de café quente;

120g de manteiga sem sal, em temperatura ambiente;

2/3 da xícara de açúcar;

3 gemas;

3 claras;

1 pitada de sal;

1 colher de sopa de açúcar;

1/3 da xícara [85g] de farinha de amêndoas;

1/2 xícara de farinha de trigo.

Para o glacé:

70g de chocolate meio-amargo, com 50% de cacau;

75g de manteiga sem sal, em temperatura ambiente;

2 colheres de sopa de rum ou café quente;

Amêndoas em lascas para decorar.

Preparo: Bolo - Pré-aqueça o forno a 170 graus. Unte uma fôrma redonda de 20cm de diâmetro com manteiga e enfarinhe, batendo bem para retirar o excesso de farinha. Reserve. Pique o chocolate em pedaços pequenos, junte o café ou rum e leve ao fogo, em banho-maria, mexendo até derreter [apague o fogo antes da água do banho-maria começar a ferver]. Reserve. Em uma tigela média bata a manteiga com o açúcar até ficar cremoso e claro [pode ser com a batedeira ou com uma colher grande/ fouet]. Adicione as gemas, uma a uma, batendo bem após cada adição. Reserve. Em outra tigela bata as claras em neve, com a pitada de sal, até formar picos moles. Adicione a colherada de açúcar e continue batendo até formar picos firmes. Reserve. Adicione o chocolate derretido à mistura de gemas, misturando para incorporar. Adicione a farinha de amêndoas e misture bem. Junte as claras em neve às colheradas, alternando com colheradas de farinha, e misturando com movimentos circulares de baixo para cima, sem bater. Distribua a massa na fôrma preparada e alise a superfície. Leve ao forno por cerca de 25 minutos, até que nas bordas a massa esteja assada, mas com o centro ainda meio mole. Retire do forno, deixe esfriar por 10 minutos na forma, e desenforme. Passe para o prato de servir e deixe esfriar completamente. Prepare o glacê – Derreta lentamente o chocolate misturado com o rum ou café em uma tigela de metal ou vidro, em banho-maria, sem deixar a água ferver. Retire do banho-maria, acrescente a manteiga, uma colherada por vez, misturando bem após cada adição. Prepare uma tigela grande, com gelo e água gelada, e coloque a tigela do glacé sobre dessa, misturando sempre, até esfriar e ganhar uma consistência de cobertura. Espalhe o glacé sobre o bolo frio, com o auxílio de uma espátula, e decore com as lascas de amêndoas.

Dica de leitura:  CASTRO, Eugénio de. Belkiss, Rainha de Sabá, d’Axum e do Hymiar: poema dramático em prosa. Coimbra: F. França Amado, 1909. 

 

 

 

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